Medida tende a acentuar condenação de inocentes e agravar situação dos presídios

 

A adoção do chamado acordo penal, medida pela qual a pena é estabelecida mediante acordo entre defesa e acusação, dispensando o rito processual, tende a agravar os casos de injustiça cometidos no sistema penal brasileiro. A constatação é da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que emitiu nota técnica em que elenca as razões para o alerta. Defendida pelo atual ministro da Justiça, o chamado  plea bargain – ou confissão barganhada, em tradução livre – vai estimular a admissão de culpa por parte de inocentes, coagidos pela iminência de condenação.

Na prática, o acordo se assemelha ao que prevê a Resolução n.º 181/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), alvo de questionamentos junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) justamente por ferir um dos princípios basilares da Constituição brasileira, que é o do devido processo legal.  De acordo com a nota técnica, além de afrontar os art. 22, I, e 130-A da Carta da República (competência privativa da União para legislar sobre processo penal e violação da finalidade do CNMP), a medida viola a “garantia constitucional da inafastabilidade do Poder Judiciário, desqualificando um dos poderes da República, qual seja, o Judiciário”.

A barganha é baseada no sistema conhecido como common law, adotado em países europeus e nos Estados Unidos, onde vem sendo objeto de duras críticas. Uma das razões é o entendimento de que se trata muito mais de coação do que de um acordo, “levando inocentes a confessar delitos que não cometeram, especialmente em razão do excesso de acusação (overcharging), além da falta de critérios objetivos sobre quais casos podem ser objeto do ajuste penal”, diz a nota.

“A proposta esbarra ainda na ausência de critérios capazes de harmonizar o modelo consensual de aplicação de pena à estrutura processual brasileira. A barganha não é um acordo de vontades entre sujeitos em posição de igualdade. Entre acusação e defesa, o acordo se afeiçoa mais a uma coação do que a um contrato”, afirma Paloma Lamego, 2ª subdefensora pública-geral do Rio de Janeiro.

A nota técnica da Defensoria Pública do Rio, que será entregue a parlamentares, ministros dos tribunais superiores e ao próprio ministro da Justiça, ressalta que o overcharging é utilizado rotineiramente na prática judiciária brasileira. A instituição recorre ao recente estudo Sentenças judiciais por tráfico de drogas na cidade e região metropolitana do Rio de Janeira, realizada por sua Diretoria de Pesquisa, para confirmar essa premissa. Após a análise de 3.167 processos, o estudo identificou 1.595 casos de correlação entre os artigos 33 e 35 da Lei de Drogas – o seja, quando o MP ofereceu denúncia por crime de tráfico e associação para o tráfico. No entanto, apenas em 27,1% dos casos ocorreu a condenação no delito associativo (art. 35), o que significa, em números absolutos, 812 absolvições.

A nota técnica da Defensoria também chama atenção para o fato de que o modelo norte americano de acordo penal ignora a vítima, “eis que a negociação é estabelecida unicamente entre acusador e acusado, característica de vai de encontro ao que preceitua o Projeto do Novo Código de Processo Penal, que tem um título específico sobre os direitos das vítimas”. O documento também destaca a relação direta entre o plea bargaining e o aumento da população prisional norte americana, “o que levou a recente aprovação do First Step Act, norma que pretende iniciar a alteração do sistema processual estadunidense”, já que há consenso de que o modelo de justiça criminal se esgotou.

“Inchadas, desumanas e incapazes de responder aos graves problemas relacionados à violência urbana e ao crime organizado, nossas cadeias não precisam de mais corpos. Se as reiteradas questões humanitárias não têm tido força para inspirar as lideranças brasileiras quanto a esse tema, que se convençam pela importação também das preocupações orçamentárias que a convivência com o plea bargain fez surgir nos Estados Unidos, berço do instituto”, sustenta Emanuel Queiroz, coordenador de Defesa Criminal da Defensoria. 

 

Nota técnica da DPRJ



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