Denúncias de mortes e invasão de casas por agentes são recorrentes, informaram palestrantes na III
Jornada de Direitos Humanos para Estagiárias(os) da Defensoria
O diálogo de nada adiantou para um estudante de Direito obrigado a deitar no chão cheio de lama da Vila Cruzeiro no momento em que seguia com o irmão para um evento de temática jurídica. Surpreendido por policiais em ação decorrente da intervenção federal na comunidade, ele questionou com a lei o motivo daquela abordagem e em represália teve os livros jogados na vala por um agente que, com esse tipo de conduta, demonstrou claramente como a Legislação vem sendo tratada nas operações em favelas e como atitudes do tipo provocam violações constantemente denunciadas à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) por meio do projeto Circuito Favelas por Direitos (que percorre os locais impactados pela intervenção com o objetivo de ouvir moradores).
Em palestra sobre o assunto proferida na III Jornada de Direitos Humanos para Estagiários(as) da Defensoria, na sexta-feira (31), participantes do Circuito falaram sobre a importância da matéria no futuro profissional dos estudantes e também contaram um pouco sobre a experiência adquirida a partir da escuta realizada pessoalmente nas comunidades e em regiões periféricas. A maioria dos relatos dos moradores diz respeito às mortes decorrentes das operações, à intimidação da população local e à violação de residências que muitas vezes resulta, ainda, em furto e na destruição de objetos pelos agentes.
– Na abordagem aos irmãos, por exemplo, o estudante de Direito questionou o policial sobre a ordem para que deitasse na água suja e fedorenta e acabou tendo o material lançado na vala. Ele relatou a conduta às instituições responsáveis pela apuração e depois recebeu em casa a intimação para uma audiência das mãos do próprio agente que praticou o ato. Com medo, resolveu não comparecer – destacou no seminário o estagiário da Ouvidoria da DPRJ, Salvino Oliveira Barbosa, também atuante no circuito.
– Essa é a realidade que vivemos e os estagiários devem conhecê-la de perto porque no futuro serão juízes, promotores ou defensores públicos e precisam saber como as coisas de fato acontecem para que possam atuar – disse ainda Salvino, lembrando do caso marcante de um adolescente retirado de casa e esfaqueado na rua por um policial – na frente de todo mundo – porque havia suspeitas de que era “vapor”; e por isso, na visão do agente, deveria servir de exemplo.
Outros relatos apresentados nos debates também impactaram o público presente na terceira edição da Jornada, realizada no auditório da Fundação Escola da Defensoria (FESUDEPERJ) e que pela primeira vez contou com a visão dos estagiários e de representantes de organizações da sociedade civil como protagonista da mesa de debatedores também composta por defensoras e defensores.
– O caso do estudante de Direito é emblemático e simbólico porque representa o descarte da lei pelo agente, que deveria preservá-la e cumpri-la. Nas escutas realizadas nas comunidades, também me chamou muito a atenção a morte de um adolescente pela Polícia, no Complexo do Alemão, quando mexia no celular. Ouvindo os relatos dos moradores a gente percebe o quão absurdo foi aquilo e vendo o local onde tudo aconteceu constata-se que de onde o agente estava dava para ver que tratava-se de um telefone nas mãos da vítima – contou a estagiária do Núcleo de Terras e Habitação (Nuth) da DPRJ, Thuane Nascimento, a Thux.
– O que posso destacar dessa experiência é a importância de agir, de fazer algo por essas pessoas e tentar, de alguma forma, mexer nessa estrutura porque ela impacta tudo. Nessa lógica dos Direitos humanos, é importante uma atuação coletiva e a participação no Circuito de Favelas é uma boa forma de se fazer isso – observou.
Atuante no Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) e no Circuito Favelas por Direitos, o defensor público Daniel Lozoya lembrou que Segurança Pública não é especialidade das Forças Armadas e que os agentes não recebem treinamento e nem capacitação para isso, já que têm como principal função a defesa nacional para lidar com ameaças externas. Embora a gestão da área atualmente esteja sob responsabilidade militar com o amparo do decreto presidencial de intervenção – e isso inclui a chefia das polícias Civil e Militar, do Corpo de Bombeiros e da Administração Penitenciária –, ele chamou atenção para a ampla militarização no setor como resultado de um discurso reducionista baseado na equivocada lógica de que vivemos uma guerra urbana.
– É uma visão completamente errada da realidade. Há confronto armado e tiroteios na cidade, mas isso não significa que estamos em guerra e essa ideologia rasa não ajuda na resolução do problema. Precisamos, sim, nos adequar a um novo paradigma que infelizmente a Constituição de 1988 não conseguiu abraçar e que é a política da Segurança Cidadã, voltada a situações de violência com prioridade para a proteção dos Direitos Humanos – destacou Lozoya.
Segundo ele, os Direitos Humanos são muitas vezes vistos como empecilho ao Estado e como problema para a Segurança Pública quando, na verdade, deveriam ser o foco da área.
– A intervenção significa o aprofundamento e o agravamento da militarização que atinge principalmente a área da Segurança, mas também o Sistema de Justiça. A manutenção de uma Polícia Militar é resquício da ditadura e, além disso, a lógica da Justiça Militar favorece os agentes na medida em que coloca civis como autores de crimes, sendo totalmente contrária aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é subscritor – argumentou.
Representantes da sociedade civil na mesa de debates
A importância do olhar apurado em relação ao cotidiano das comunidades foi destacada na Jornada como um ponto fundamental para a formação dos futuros operadores do Direito por representantes de organizações da sociedade civil como Bruna Aguiar. Liderança em Acari, ela disse que na visão dos moradores o Estado está presente nas favelas apenas com seu braço armado e que a Justiça somente assegura os direitos da elite branca.
– Quando o Estado nos olha pela mira do fuzil, são os próprios moradores que precisam intervir nas mais diversas situações para tentar assegurar direitos. São pessoas como nós que recebem ligações da população local informando que há policiais dentro de casa, sem mandado judicial, e que por isso é preciso ir até lá para conversar amigavelmente porque o cara não quer sair – informou Bruna, em seguida completando: “A minha fala é muito mais no sentido de fazer esse chamamento para que vocês possam olhar para a nossa realidade”.
Atualmente considerada uma das comunidades mais violentas do Rio de Janeiro, o Chapadão foi representado no evento por Jorge Franco e na ocasião o morador falou sobre a rotina de tiroteios e caveirões a que adultos e crianças estão diariamente submetidos juntamente com a falta constante de assistência à Saúde e à Educação.
– Falta luz e água onde eu moro e durante muito tempo também não teve merenda escolar. As crianças tomavam apenas um copo de leite na escola e ainda falta professor de Física, de Inglês e de Geometria. Já em relação ao caveirão, isso nós temos todo dia. Diariamente temos tiroteios e mortes e hoje mesmo (sexta-feira, 31 de agosto) um blindado entrou na comunidade por volta de meio-dia e vinte, horário em que a rua está cheia de crianças voltando da escola com pais, mães e avós – alertou Jorge, e prosseguiu: “Queria que vocês, estudantes, dessem nova roupagem ao tema Direitos Humanos. Direitos Humanos é a defesa da vida e vida não importa de quem seja”.
A coordenadora do Nuth, Maria Júlia Miranda, acompanha o Circuito e na Jornada disse que os moradores das comunidades sabem da existência de direitos como o da proibição de violação ao domicílio sem mandado judicial e de que mulheres não podem ser revistadas por homens, o que, para eles, existe só na teoria. Na prática, tudo isso é ignorado por agentes.
– A estigmatização da favela faz com que a política de Segurança Pública adotada nas comunidades seja completamente diferente da que é aplicada no asfalto. É uma política violadora dos direitos individuais e no Circuito a gente percebe que há uma suspensão da Constituição Federal nesses territórios. Simplesmente, não existem direitos sociais, direito à Saúde, à Educação e ao saneamento básico. No momento das operações policiais, fica tudo suspenso e os relatos são assustadores – pontuou.
– Uma questão importante a ser abordada é de que o decreto da intervenção não explica como o interventor vai agir, e isso deixa muito em aberto o que seria essa ação excepcional que merece tantos cuidados – ponderou no debate outra participante do Circuito, a estagiária do Nudedh, Danielle Chrustello.
Jornada marca as comemorações pelo Dia da(o) Estagiária(o)
A Jornada de Direitos Humanos marca na Defensoria Pública o Dia Nacional da Estagiária e do Estagiário, comemorado em 18 de agosto. Em sua terceira edição, o evento contou com sorteio de brindes e com a entrega do Prêmio Jurídico ao final, tendo sido realizado pela Coordenação de Estágio e Residência Jurídica; pelo Centro de Estudos Jurídicos (Cejur); e pela FESUDEPERJ; com o apoio da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro (ADPERJ). A programação do evento incluiu a Roda de Conversa “A atuação da Defensoria Pública em contexto de intervenção”; e relatos do Circuito Favelas por Direitos.
– O Circuito é uma oportunidade para vivenciar no território – com diálogo – a escuta tão importante aos moradores para as demandas mais latentes por direitos e entre eles há essa expectativa. Querem um sistema de Justiça efetivamente que jogue a favor do morador da favela e não contra, porque hoje veem o Estado como repressor e como violador de direitos – destacou no evento o ouvidor-geral da DPRJ, Pedro Strozenberg.
Compondo a mesa de abertura da jornada estava a coordenadora de Estágio e Residência Jurídica, Maria de Fátima Dourado; a diretora de capacitação do CEJUR, Adriana Silva de Britto; e a diretora presidenta da FESUDEPERJ, Carolina Anastácio.
Texto: Bruno Cunha
Fotos: Jaqueline Banai
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