As sequelas deixadas nas famílias das vítimas de truculência policial, durante as operações realizadas nas favelas do Rio de Janeiro, são expostas de uma forma única no documentário Auto de Resistência, em exibição nos cinemas. Com direção de Natasha Neri e Lula Carvalho, o filme conta com a participação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) ao narrar a saga pela busca de Justiça vivida por diversas mães que perderam seus filhos para a violência estatal.
A pré-estreia do longa aconteceu na última sexta-feira (21), no Centro Cultural Luiz Severiano Ribeiro, o antigo Cinema Odeon. O evento – que integrou o projeto Cine Debate, do cineclube Direitos em Movimento – foi precedido de uma roda de conversa entre o defensor público Daniel Lozoya, que participa do filme, o advogado e ativista dos Direitos Humanos, Rodrigo Mondego, e a presidente da Comissão de Direito Penal do Instituto de Advogados Brasileiros (IAB), Victória Sulocki.
Mediado pela jornalista Flávia Oliveira, o cine debate contou também com a participação das mães de dois jovens do documentário. Uma delas, Ana Paula Gomes de Oliveira, é mãe de Johnathan Oliveira de Lima, de 18 anos, morto após ser baleado nas costas por um PM da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Manguinhos, em maio de 2014. O outro jovem foi morto em uma operação no Borel. Ambas as comunidades ficam na Zona Norte.
O filme retrata não só a violação dos direitos humanos e da integridade física das pessoas durante as ações policiais, como também aborda a marginalização das favelas do Rio. O documentário expõe o impacto dessa brutalidade no cotidiano dos inocentes e na vida de familiares das vítimas, que foram assassinados por policiais.
Ana Paula declarou que está "condenada" a conviver com a dor da morte do filho e com a marginalização da memória dele, que foi julgado como criminoso após a Polícia alegar que ele trocou tiros com PMs. Ela, que representou o movimento Mães de Manguinhos no evento, criticou as abordagens policiais nas favelas. Para Ana Paula, o objetivo dessas ações “é exterminar parte dessa população”, já que os alvos dos policiais são “jovens, negros e pobres”.
– A favela não é violenta. Nós é que somos violentados quando nos tornamos alvos da Polícia e de injustiças. Meu filho era inocente e foi morto de maneira cruel. No dia seguinte, vi a foto do meu filho na televisão e a apresentadora do programa dizendo que a Polícia disse que Jonathan foi morto durante uma troca de tiros. Quando eu vi isso, senti como se tivesse perdido meu filho novamente – disse Ana Paula.
Dados divulgados pelo Instituto de Segurança Pública do Estado (ISP), entre janeiro e maio desse ano, 606 pessoas foram mortas pela Polícia no Rio. Isso corresponde a cerca de quatro pessoas por dia. Segundo defensor público Daniel Lozoya, moradores desses territórios convivem com o reflexo de atuações discriminatórias praticadas pelo Estado para promover segurança.
– Essa retórica de que estamos em guerra e que é necessário utilização de armamento pesado gera barbárie. Não precisa ser especialista em segurança pública para entender que essa prática coloca em risco a vida de muitas pessoas. Isso também mostra como o Estado pensa e atua nesses espaços, para combater o inimigo, que na verdade são pessoas em situação de vulnerabilidade social. É fácil estigmatizar um jovem negro, morador de favela, quando ele é morto durante uma dessas ações policiais. Porque ele recebe, automaticamente, um selo de criminoso – comentou.
De acordo com a representante da IAB Victória Sulocki, a população negra e pobre é a que mais sofre com a violência. Ela destaca que "na raiz dos problemas está a escravidão negra", que se arrasta desde a colonização do Brasil.
– Enquanto nós tivermos essa grande parcela da população brasileira numa zona de não ser, não ser reconhecido enquanto pessoa, jovem, adolescente, estudante, cidadão brasileiro, nós continuaremos tendo esse genocídio – destacou.
Para o advogado Rodrigo Mondeo, trabalhar a desconstrução desses rótulos na sociedade, de maneira educativa e gradual, é essencial. Na avaliação dele, os discursos de ódio proferidos contra pessoas mortas com suspeita de envolvimento com o crime, servem para depreciar e afetar as memórias das vítimas.
– Em qualquer lugar do Brasil tem uma figura que respalda e defende a morte de pessoas suspeitas de terem envolvimento com crime. Como se desconstrói isso, já existe um fetiche de pessoas que têm prazer de ver a morte de outras pessoas? É por isso, que temos de fazer o trabalho de formiguinhas, um a um na desconstrução dos ataques aos direitos humanos – concluiu.
Cineclube
Em sua 11ª edição, o cineclube Direitos em Movimento, resultado de uma parceria entre a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Fundação Escola da Defensoria Pública do Estado (Fesudeperj), Instituto de Advogados Brasileiros (IAB), Caixa de Assistência dos Advogados do Rio (CAARJ) e o Odeon, reuniu cerca de 400 pessoas na sala de cinema. O encontro tem como objetivo promover debates reflexivos seguidos da exibição de filmes cujos temas geram discussões relevante.