A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) denunciou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) o “tratamento cruel, desumano e degradante” conferido àqueles que, no Estado Brasileiro, necessitam, “com urgência”, de internação em leito de terapia intensiva no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). No documento protocolado no órgão nessa segunda-feira (21), a DPRJ destaca a situação de pacientes assistidos pela instituição que obtiveram liminares determinando a transferência das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) para Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). O estado de saúde dessas pessoas é grave e elas correm o risco de morrer caso não consigam as vagas na UTI.
A denúncia relata a situação dos pacientes que ainda aguardam as vagas, assim como de outras pessoas que faleceram após dias de espera por leitos de UTI. No documento, a Defensoria requer que o organismo internacional tome medidas “para proteger eficazmente” a “vida e a integridade pessoal” de todos os pacientes que necessitam de cuidados intensivos.
– Para levar o caso à Comissão Interamericana é preciso comprovar que estão esgotados todos os esforços internos para a solução do problema. Não faltam decisões judiciais determinando ao Poder Público que aumente a oferta de vagas em UTI e promova a regulação unificada dos leitos. E, apesar de reconhecerem o déficit de vagas, as esferas federal, estadual e municipal jamais tomaram providências. A denúncia ao organismo internacional pode vir a resultar em condenação do Estado brasileiro e forçar a adoção de políticas para combate ao problema – explica a coordenadora de Saúde e Tutela Coletiva, Raphaela Jahara.
Na denúncia, encaminhada à secretaria executiva da CIDH em Washington, a Defensoria ressalta que todos os entes federativos – União, Estado do Rio e Município do Rio – são responsáveis pela falta de leitos de UTI ou pela desorganização na oferta de internações. As vítimas apontadas na denúncia são “a personificação dos milhares de brasileiros, crianças e adultos, que, ao menos, desde 2010, falecem nas unidades públicas” estaduais e municipais do Rio “em razão da indisponibilidade de leitos vagos no SUS de terapia intensiva”, aponta o documento.
– A demanda individual que chega ao Plantão Judiciário Noturno é o espelho da demanda coletiva não atendida. Pelo número de familiares que procuram a Defensoria no plantão é possível estimar o déficit de leitos de UTI. Os casos mais graves e urgentes, que necessitam de terapia intensiva, acabam por bater na porta do plantão, entre 18h e 11h; e a grande maioria é assistida pela Defensoria Pública – acrescenta Raphaela, que também coordena o atendimento da Defensoria no plantão.
Três pessoas morrem por dia à espera de vaga em UTI
Levantamento da coordenadoria de Saúde e Tutela Coletiva aponta que, em média, três pessoas morrem na rede pública do Rio de Janeiro, todos os dias, à espera de leitos de UTI. Esses dados referem-se somente aos casos levados ao Poder Judiciário pela Defensoria Pública em atuação junto ao Plantão Noturno. Até 2015, as transferências para unidades de terapia intensiva ocorriam, na maioria das vezes, em até 24 horas após decisão prolatada pelo Juízo do plantão. Nos últimos meses, a espera por vaga, mesmo após ordem judicial, é superior a 48 horas.
Na última década – como ilustra a denúncia levada à Corte Interamericana – houve sucessivas iniciativas da Defensoria Pública e de outros órgãos com vistas à proteção dos pacientes com indicação terapêutica de internação em centros de unidades intensivas. Todas foram ignoradas pelos Poderes Executivos.
Em 2011, o Ministério Público ajuizou Ação Civil Pública (à qual a Defensoria Pública se juntou posteriormente) postulando, em caráter de urgência, que o Estado contratasse 349 leitos de UTI na rede privada e expandisse a rede do SUS, inclusive por meio da regulação de vagas, racionalizando e otimizando a oferta. O pedido foi parcialmente acolhido pela Justiça; Estado e Município reconheceram o problema. A solução, porém, nunca foi posta em prática.
Geraldo morreu no ano seguinte ao ingresso da ACP. Tinha 69 anos e resistiu cinco dias na UPA de Duque de Caxias, aguardando transferência para leito de CTI. Por ordem judicial, chegou a ser internado em unidade de terapia intensiva, mas faleceu pouco depois. Em agosto de 2013, em vistoria a 50 unidades apenas na cidade do Rio, o MPRJ encontrou 812 pessoas aguardando internação, dos quais 220 adultos e quatro crianças à espera de CTI/UTI. No mesmo ano, a Defensoria passou a monitorar as demandas individuais levadas ao Plantão Judiciário Noturno.
De julho de 2013 e junho de 2014, foram ajuizadas, em média, cerca de 153 demandas por mês, das quais 83% buscavam leitos de terapia intensiva. Os relatórios já apontavam que, dentre os pacientes cujas famílias recorreram à Justiça, mas não conseguiram cumprimento da decisão, a maioria faleceu nas 24 horas seguintes.
Maria Joana, 53 anos, paciente com doença pulmonar obstrutiva crônica cuja família recorreu ao Plantão Judiciário Noturno em abril de 2014, resistiu um pouco mais. Foram 72 horas na UPA de Manguinhos, à espera de um leito de UTI. Até hoje, José Carlos e Taíza dos Santos, que não viram cumprida a ordem judicial que determinava a transferência da mãe para UTI, são penalizados também pela morosidade do Poder Judiciário em apreciar ação de compensação por conta dos danos morais impostos pela “pela humilhação e descaso com que foram tratados pelo Poder Público”.
– A situação de quem recorre à Justiça em busca de leitos de terapia intensiva só agravou. Cresceu a quantidade de ações individuais pleiteando vaga em UTIs, assim como o número de decisões judiciais favoráveis descumpridas. O cumprimento, quando há, leva pelo menos dois dias, tempo demais para esses pacientes. A taxa de mortalidade entre as pessoas que esperam transferência para UTI era de seis óbitos a cada dez pacientes. Hoje, a taxa é de quase sete óbitos a cada dez pedidos feitos à Justiça. O Poder Público não cumpre decisões individuais, assim como descumpre as decisões proferidas nas ações coletivas. As famílias que recorrem ao Judiciário têm nas mãos decisões inócuas; e, por vezes ainda encontram grande dificuldade em conseguir reparação pela perda – diz Raphaela.
Na denúncia à Comissão Interamericana, a Defensoria destaca a responsabilidade das autoridades federais, estaduais e municipais sobre a vida de cada um desses pacientes, uma vez que “as vítimas estão internadas em unidades públicas de saúde, sob a guarda e a proteção direta do Estado, em estado grave de saúde”.
E prossegue:
“A realidade nua e crua é uma só: enquanto não forem implementados novos leitos de UTI capazes de suprir a demanda, essa verdadeira chacina continuará a ocorrer todos os dias, podendo atingir Adeildo, Oliveiro, Rita e Liolita, matando mais de 90 pessoas por mês, e 1.080 pessoas por ano, como ocorreu com Geraldo, Maria Joana e Maria da Penha”, deixa claro o texto.
Maria da Penha é um exemplo de que o problema persiste, e se agrava. Após cinco dias de espera na UPA de São Gonçalo, sofrendo de sérios problemas cardio-respiratórios, faleceu, aos 75 anos, no último dia 16 de maio, a despeito de várias decisões judiciais obtidas no Plantão Noturno pela garantia de vaga em unidade de cuidados intensivos. Maria da Penha foi transferida apenas a tempo de ir a óbito, horas depois.
– A grande maioria dos casos que chegam a Defensoria Pública em atuação no plantão noturno estão em UPAS, que deveriam apenas prestar primeiros socorros. As chamadas “salas vermelhas” dessas unidades funcionam como postos de internação, e ali são mantidos pacientes em condições que exigem aparelhos de monitoramento e de preservação das funções vitais – , ressalta a defensora Raphaela Jahara.
No documento, a Defensoria do Rio menciona ainda que, a Prefeitura do Rio, “além de não expandir os seus leitos, como determinado judicialmente, desde 2014”, bloqueou, nos últimos meses, 34 leitos de terapia intensiva nos Hospitais Municipais Pedro II e Albert Schweitzer.
A denúncia, assinada pelo defensor público geral, André Castro; e pelas defensoras Raphaela Jahara, Thaisa Guerreiro, Samantha Oliveira e Daniela Consídera, e pelo defensor Fabio Amado, ainda não tem data para ser analisada pela CIDH.
No Brasil, há pelo menos um caso de denúncia internacional que resultou na adoção de políticas públicas: a Lei Maria da Penha, contra a violência doméstica e de gênero, foi sancionada em 2006, oito anos após ter sido levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.