Aos 30 anos, Patrícia cria seis filhos. Deu à luz pela primeira vez ainda adolescente. A filha mais velha está com 16 anos. O caçula, com  sete, nasceu antes que Patrícia completasse 25 anos, limite mínimo legal para que as mulheres com pelo menos dois filhos vivos possam se submeter, voluntariamente, à cirurgia de ligadura de trompas.  Marcilene também foi mãe seis vezes antes do 25º aniversário; o primogênito tem nove anos.  Quase às vésperas de atingir a idade mínima para se candidatar à esterilização, pariu o sétimo bebê, hoje com quatro meses. 

Moradoras de Jardim Gramacho, uma das áreas mais miseráveis de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Patrícia e Marcilene são algumas dentre as mais de 40 mulheres do bairro que recorreram à Defensoria Pública na tentativa de conseguir a laqueadura tubária ou de trompas pelo Sistema Único de Saúde. Outras vinte mulheres, de diferentes localidades do município, engrossam a fila de pedidos nas mãos de defensores públicos. Todas com a mesma expectativa e histórias parecidas de gestações precoces e numerosas.

— A maioria dos casos nos chegam porque vamos até a comunidade e mantemos contato com lideranças locais. Muitas dessas mulheres sequer sabiam que há a possiblidade de laqueadura em hospital público. A demanda oculta é incalculável — resume a defensora pública Alessandra Bentes, do Núcleo de Primeiro Atendimento de Caxias, para onde convergem todos os pedidos iniciais.

A Lei 9263, de 12 de janeiro de 1996, sobre planejamento familiar, permite a esterilização voluntária “em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico”.  Como Patrícia e Marcilene, há uma quantidade ignorada de mulheres que já cumprem, com folga, esses requisitos e poderiam se beneficiar do procedimento gratuito.  A elas se junta outro grupo, facilmente encontrado em Jardim Gramacho e arredores: a de mães com dois, três, quatro, cinco filhos mas que ainda não passaram dos 24 anos de idade.

— A imposição de idade mínima para a esterilização não se aplica à realidade de Caxias. E sofrem as mulheres pobres, que não podem pagar pela cirurgia — define a defensora Marina Magalhães Lopes, da 2ª Vara Cível de Caxias.

Patrícia e Marcilene são exemplos claros do que diz a defensora. 

— Eu preciso muito dessa operação. Os médicos sempre disseram que não podem fazer nada porque sou muito nova, que não podiam ‘me ligar’ no nascimento das crianças —, conta Patricia, que vive em Jardim Gramacho com os três mais novos; os outros moram com o pai, em Nova Iguaçu.

A Defensoria Pública tem conseguido garantir na justiça o direito à esterilização no momento da cesariana. A Lei 9263 não permite que os dois procedimentos sejam simultâneos, mas há decisões contrárias que contemplam os interesses das mulheres.

Foi assim com Mariana, que aos 24 anos, grávida de 35 semanas do terceiro filho, contou com o apoio das defensoras Alessandra e Marina numa ação que correu contra o tempo. Em 21 de agosto, Mariana foi mãe pela terceira vez; horas depois, deixou o hospital público com as trompas ligadas.

— Se possuísse recursos financeiros, Mariana e tantas outras não teriam dificuldades em fazer a esterilização em hospital particular. Não é justo que, por ser carente, não consiga realizar a cirurgia —, argumentou a defensora Marina Lopes, já em recurso junto ao Tribunal de Justiça, o qual assegurou a realização do procedimento.

Nem sempre, porém, a manifestação expressa da vontade da gestante, devidamente respaldada por decisão judicial, é suficiente para que a ligadura de trompas se dê no parto. A defensora Alessandra Bentes se lembra de ao menos um caso, o de Rita de Cássia, à época já com 29 anos,  dois filhos, em que o obstetra descumpriu a liminar, fazendo valer a legislação, que veda a esterilização concomitante ao parto.

— Essa é a letra fria da lei. Nós entendemos, porém, que a laqueadura no momento do parto é a melhor opção para as mulheres. É mais seguro por se dar numa única intervenção e descomplica, pois nem sempre elas terão tempo e oportunidade de passar por outra cirurgia eletiva, já que precisam trabalhar e cuidar dos filhos. É um desperdício de energia e verbas públicas separar, em dois atos cirúrgicos, o parto e a esterilização—, analisa Alessandra Bentes.

Para Patricia, Marcilene e as outras mulheres que já completaram 25 anos idade, têm dois filhos vivos ou mais e estão seguras da necessidade de esterilização, a Defensoria Pública de Caxias espera fechar acordo extrajudicial com a secretaria municipal de Saúde para garantir a cirurgia o quanto antes.

— Estamos em negociação.  Seria a solução para boa parte das mulheres que atendemos — adianta a defensora do núcleo.

Para os demais casos, quase na totalidade por conta de idade inferior ao limite mínimo, é preciso lançar mão de ações individuais.

“Os direitos humanos das mulheres incluem seu direito a ter controle e decidir livre e responsavelmente sobre questões relacionadas à sua sexualidade, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, livre de coação, discriminação e violência”, insistem os pedidos de ligamento de trompas ajuizados pelo núcleo de Caxias.

Na primeira semana de dezembro, Alessandra Bentes e Marina Lopes comemoraram mais uma vitória na justiça de Caxias: Lorrayne, 21 anos, três filhos, o mais novo com nove meses, obteve antecipação de tutela favorável do juízo da 7ª. Vara Cível.

“A Lei 9263/96, que versa sobre planejamento familiar, traz os requisitos autorizadores da esterilização voluntária. A autora, em que pese possuir menos de 25 anos de idade, atende aos demais requisitos, eis que possui três filhos vivos. A manifestação de vontade supera os sessenta dias exigidos [entre o pedido e a cirurgia] e há o consentimento do cônjuge”, determina a sentença, determinando que seja oferecida “gratuitamente a cirurgia de laqueadura tubária, a ser executada pelo Hospital Doutor Moacyr Rodrigues do Carmo”, determina a decisão.

Vizinhas em Jardim Gramacho, Stefanie e Adriane, ambas de 18 anos, Mayara e Mariana, de 20, e Thainá, 21, aguardam na fila, cada uma já com um par de filhos. As cinco jovens, a exemplo de Patrícia, de Marcilene e de outras dezenas de mães fizeram o primeiro contato com a Defensoria numa ação social no bairro, onde os defensores públicos de Caxias e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos acompanham a situação das famílias que tiravam o sustento do aterro sanitário, desativado em 2012. 



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