“Eu não posso me arrepender de uma coisa que eu não queria fazer”
“Eu amava meu marido, mas eu amava mais a mim e a meu filho. A dor que eu sinto por ter cometido esse ato só vai acabar quando eu morrer”. Foi com essas palavras que Úrsula, personagem real do filme “Legítima defesa”, contou um pouquinho de como se sentiu livre para falar sobre o que viveu no cine-debate realizado nesta quarta-feira (13), na sede da Defensoria de Duque de Caxias, organizado pela defensora titular, Renata Tavares. Seu ex-marido era um policial militar que a ameaçava e violentava constantemente, inclusive colocando uma arma em sua boca dizendo que ia matar a ela e seu filho. Ela sabia que um caixão estava prestes a sair de dentro de sua casa, só não sabia quem seria a vítima.
Após sofrer 20 anos neste ciclo de violência, em mais uma das brigas, Úrsula pegou a arma para se defender e matou o ex-companheiro. Apesar de tudo que sofreu, ela não culpa o ex-marido e ainda reconhece que ele também era vítima do sistema. Na verdade, apesar dela ter tirado a vida de seu ex-companheiro, ela é uma sobrevivente da violência cotidiana que sofria. De acordo com Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a cada duas horas uma mulher é assassinada no Brasil.
O crime de feminicídio acontece quando um homem mata uma mulher apenas pela condição de ser mulher. Só no ano de 2016 foram quase 62 mil mulheres, de todas as classes sociais. Esses números alarmantes mostram que a desgraça acaba sendo sempre com a mulher. Problemas com drogas, sentimento de posse, ciúmes e baixa autoestima das mulheres são características comuns entre os casos.
Muita gente já deve estar se perguntando o motivo pelo qual estas mulheres não denunciaram ou se separaram antes de chegarem ao desfecho fatal. Mas elas mostram que não é simples assim: “se você reage, você apanha mais”; só de pensar na possibilidade de denunciar, os ex-companheiros ameaçavam tirar a vida delas. Quando a Lei Maria da Penha entrou em vigor, o ex-marido de Úrsula já foi logo dizendo para ela que a Lei não serviria para ele, que se ela denunciasse, seria morta, picotada e ninguém saberia o que aconteceu.
Foi a partir do documentário “Legítima defesa”, que recebeu o prêmio de melhor longa-metragem no Festival Internacional Mujeres En Foco, em Buenos Aires, que o público presente na sede de Caxias pôde conhecer as histórias de Úrsula e mais duas mulheres vítimas de violência física e psicológica, processadas criminalmente por terem matado seus agressores. A sessão e o filme, contaram com a participação da defensora pública que atuou no Tribunal de Júri de Nova Iguaçu, Glauce Passos de Souza Maués, da promotora Claudia Porto Carrero e da equipe do filme: a produtora Leda Stopazzolli, a roteirista Sara Stopazzolli, irmã de Leda, e a diretora do filme Susanna Lira. O 2º cine-debate em Direitos Humanos foi realizado em comemoração ao Dia Internacional dos Direitos Humanos, celebrado dia 10 de dezembro. A fachada local da instituição também foi grafitada, no dia do evento, por Rodrigo Maisalto e Clebert Black, que deram cor e voz ao muro, aos informarem sobre os direitos humanos.
No documentário, apenas duas dentre as dez mulheres convidadas a dar depoimento pela produção aceitaram mostrar o rosto: Úrsula e Daiane. A defensora pública Glauce atuou na defesa de Úrsula e de uma terceira mulher, que não quis se expor. Seu caso foi reproduzido no filme com seu nome trocado, interpretado por atrizes em conjunto com a juíza, a defensora e a promotora que interpretaram os próprios papéis na emocionante simulação do julgamento do Tribunal do Júri.
Daiane tinha 16 anos quando engravidou do namorado. Além de muito ciumento, ele também a agredia: “ele vivia me ameaçando que se eu largasse ele, ele ia matar a mim e a minha filha”. Em mais uma das brigas após o término da relação, seu ex-namorado pegou uma faca para ameaçar tirar sua vida, caso não aceitasse voltar com ele. Foi quando ela conseguiu pegar a faca dele e acabou atingindo seu coração. “Era pra ter sido comigo, ele quem pegou a faca para me matar, não fui eu quem peguei a faca para matar ele”, disse emocionada.
Dez anos depois, as três personagens que aparecem no documentário foram absolvidas e trabalham na reconstrução de suas vidas. Úrsula se formou como assistente social e Daiane está cursando Direito e pretende ser defensora pública. Úrsula está feliz com a repercussão do filme, que está abrindo cada vez mais espaço para que ela possa falar sobre violência doméstica. Daiane, que tem 27 anos, contou que está sofrendo muito preconceito no trabalho e na sociedade: “me culpam porque eu tinha 17 anos na época, era adolescente, imatura… Me culpa por eu ter me apaixonado”.
A ideia do documentário foi da produtora Leda Stopazzolli, estudante de Direito. O roteiro foi escrito por Sara Stopazzolli, irmã de Leda, que pesquisou processos em que as rés fossem mulheres vítimas de violência doméstica levadas à justiça por terem se protegido e a seus filhos matando os companheiros agressores. O levantamento de Sara nos tribunais do Rio e São Paulo identificou 50 desses casos nos últimos dez anos. Dentre os 50 casos, a pesquisadora e roteirista localizou 10 mulheres.
O filme "Legítima Defesa" irá estrear na televisão, no canal CineBrasilTV, no dia 16/12 às 22h. Confira o trailer: https://goo.gl/TU9HHj
Texto: Thathiana Gurgel
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