Há exatas duas décadas, quando as delegacias especializadas podiam ser contadas nos dedos de uma só mão, a violência contra a mulher ainda era considerada de “menor potencial ofensivo”, feminicídio era uma expressão desconhecida e não havia Lei Maria da Penha, surgiu o Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher e de Vítimas de Violência de Gênero (Nudem) da Defensoria Pública do Rio, iniciativa pioneira que logo se multiplicaria pelas demais Defensorias estaduais de norte a sul do país. A criação do núcleo, em 24 de novembro de 1997, se deu na véspera do Dia Internacional da Não-violência Contra a Mulher, celebrado todos os anos no dia 25.
— Percorremos um longo caminho contra a violência de gênero. O que começou como combate ao abuso doméstico, amadureceu. O enfrentamento hoje é contra todo tipo de agressão às mulheres, inclusive institucional — explica a defensora pública Arlanza Rebello.
Pelo núcleo, passam todos os anos, em média, 1100 mulheres à procura de primeiro atendimento, a quase totalidade moradora no município do Rio. O perfil socioeconômico é variado: das mais pobres às privilegiadas: diante da violência de gênero, a assistência imediata da Defensoria não distingue classe social ou renda; prevalece a vulnerabilidade de cada uma nos momentos seguintes ao abuso. Abuso esse cuja definição extrapola em muito a agressão física, verbal e/ou psicológica impingida por namorados, maridos e companheiros, ainda os algozes mais frequentes.
E foram justamente o projeto de abordagem mais ampla do que seja violência de gênero e a necessidade de haver estrutura capaz de contemplar os interesses das mulheres vítimas que levaram a Defensoria a, mais uma vez, inovar. No ano passado, o Nudem passou a funcionar como parte de uma coordenadoria, atuante junto a todas os órgãos da Defensoria em território fluminense, articulando e integrando esforços em defesa da mulher, o que abrange também a rede de serviços multidisciplinar disponível em cada localidade.
— Desde 2015, nos dedicamos a combater em várias frentes. São casos de violência sexual, de estupros coletivos, de violência obstétrica, de violência institucional contra presas — cita Arlanza Rebello, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher.
No Nudem, o atendimento às mais de 1 mil mulheres que a cada ano buscam o núcleo e o acompanhamento dos casos que permanecem sob a responsabilidade do órgão (a grande maioria dos que ali nascem, aliás), agora atua a defensora pública Simone Estrellita da Cunha, a primeira titular do núcleo.
— Somos um órgão de atuação com o intuito precípuo de prestar à mulher vítima atendimento pleno. Revivemos, a cada escuta, uma dor única revelada em cada peça processual que elaboramos. Aprendemos a cultivar a semente que busca tornar efetivos todos os direitos das mulheres vítimas de violência de gênero. Cotidianamente nos é revelado que existe apenas um direito a ser defendido e preservado: o direito à vida para todas as mulheres. É preciso que se reafirme que este direito à vida, em sua concepção global, deve ser compreendido como uma vida sem violência, com igualdade e efetividade de direitos e preservação de nossa humanidade — define a defensora Simone Estrellita.
Na subcoordenadoria, trabalhando lado a lado com Arlanza, está outra defensora, Maria Matilde Alonso Ciorciari.
— Num momento em que os direitos das mulheres estão sendo continuamente ameaçados é muito importante a nossa instituição manter um núcleo especializado para os casos de violência de gênero, garantindo atendimento de qualidade, humanizado, multidisciplinar e integral. O Nudem tem mantido um papel de protagonismo na rede de serviços para enfrentamento à violência contra mulher, sendo responsável, inclusive, por promover reuniões de trabalho periódicas com a presença de representantes desses serviços em todo o estado —, ressalta a subcoordenadora Maria Matilde.
A ampliação do alcance do trabalho iniciado pelo Nudem e o fortalecimento da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Mulher também se deu com a criação de um grupo de trabalho de Monitoramento das Políticas Institucionais na Perspectiva de Gênero, ora com a participação de 19 defensoras públicas. À iniciativa soma-se o alinhamento de pautas como outros núcleos temáticos da Defensoria do Rio, em especial o Núcleo contra a Desigualdade Racial (Nucora), o Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual (Nudiversis) e o Núcleo do Sistema Penitenciário (Nuspen), bem como com a Coordenadoria de Defesa Criminal.
Por meio da coordenadoria, a Defensoria Pública traz para dentro da instituição a perspectiva de gênero que deve perpassar todas as áreas. O intercâmbio entre os diferentes órgãos de atuação faz com que a defesa dos direitos da mulher, gerada décadas antes, com a criação do Nudem, em 24 de novembro de 1997, ganhe dimensões para além do âmbito doméstico e familiar, cruzando os muros dos presídios e promovendo esforços conjuntos para a garantia dos direitos das detentas grávidas, lactantes e mães de filhos menores de doze anos, por exemplo. Ou das presas que pariam algemadas à cama hospitalar.
— Temos uma política institucional de interlocução entre todas as defensoras e todos os defensores de algum modo envolvidos com a questão da mulher. Nossos mecanismos de atuação, cujo germe foi o Nudem, visam ampliar e fortalecer a política de gênero, o que se faz ainda mais necessário em tempos como esses, quando os direitos das mulheres sofrem ameaças constantes — destaca Arlanza Rebello.
O trabalho da coordenadoria vai, inclusive, muito além dos limites do estado do Rio de Janeiro e tem como um dos pilares também o acompanhamento das demandas das mulheres em questões de âmbito nacional. Em breve, a Defensoria do Rio ingressa como amicus curiae (parte interessada) em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) junto ao Supremo Tribunal Federal pela descriminalização do aborto. Possibilidade de atuação bem distinta da de um tempo em que os temas de gênero e a violência contra a mulher não passavam dos Juizados Especiais Criminais (Jecrims), os chamados os juizados de crimes de menor potencial ofensivo, criados em 1995.
— Logo o movimento de mulheres percebeu que as respostas do Judiciário à época eram inócuas e só agravavam a desigualdade social e, especificamente, de gênero — destaca Arlanza, que durante grande parte dos vinte anos de existência do Nudem foi coordenadora do órgão, auxiliada por colegas que lá também trabalharam e puderam assistir, uma a uma, as Defensorias de outros estados adotarem em núcleos especializados na defesa da mulher a sigla cunhada no Rio de Janeiro.
SERVIÇO
Nudem
Rua do Ouvidor 90/4º andar – Centro – Rio de Janeiro – RJ
Tel: 2332 6371
Atendimento de segunda à quinta-feira, das 10h às 18h (chegar antes das 16h).
Às sextas-feiras, apenas para medidas de urgência, no mesmo horário.