Pouco menos de duas horas após uma turista espanhola morrer na Rocinha, vítima de um tiro que teria sido disparado pela Polícia, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) e outras três entidades denunciavam à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) as sistemáticas violações praticadas nas favelas cariocas pelas forças de segurança. Na apresentação, feita na audiência do órgão que aconteceu no início da tarde desta segunda-feira (23), em Montevidéu, no Uruguai, os denunciantes pediram a aplicação de medidas que obriguem o estado brasileiro a adotar um plano de redução de danos para as operações policiais. Levantamento apresentado pelas instituições, revela que 642 pessoas morreram nos sete primeiros meses deste ano, em ações da Polícia ocorridas nas comunidades do Rio.
A denúncia foi apresentada pelos defensores Daniel Lozoya e Lívia Casseres, do Núcleo de Direitos Humanos da DPRJ; Daniela Fichino, da Ong Justiça Global; Eliana Sousa, da Redes da Maré; e Shana Santos, do Instituto de Estudos da Religião (Iser). Também esteve presente na audiência, o ouvidor-geral da Defensoria Pública, Pedro Strozemberg. Além das instituições que apresentaram a denúncia, assinam o documento as organizações CRIOLA e Movimento Negro Unificado (MNU).
Primeira a se apresentar, Lívia criticou a frequente “militarização” na vida das pessoas que moram nas favelas. Segundo a defensora, somente na última década, as Forças Armadas foram convocadas 12 vezes para atuar em situações que vão de megaeventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, à ocupação de comunidades, a exemplo da Maré e do Alemão, para garantir a segurança pública. De acordo com Lívia, essas operações costumam se caracterizar pelo uso excessivo da força, inclusive contra os moradores.
– Na conjuntura das recentes e múltiplas precarizações na vida dos brasileiros e brasileiras, os habitantes dos territórios marginalizados do Rio têm experimentado, de forma cada vez mais profunda, o impacto da diretriz autoritária das agências de segurança sobre suas liberdades, direitos civis, políticos, econômicos e sociais – afirmou a defensora.
A representante da Justiça Global lembrou que, em 2017, um em cada cinco estudantes da rede municipal de educação ficou sem aula por falta de condições de segurança.
– No conjunto de favelas da Maré, os dados apontam que os alunos ficaram um mês sem aula, durante o ano de 2016. Se aplicarmos esse quantitativo aos 12 anos que compreendem os ensinos fundamental e médio, isso representaria um ano a menos de estudos para os alunos da Maré – apontou Daniela.
Já Eliana Sousa ressaltou que, além dos 26 mil alunos que ficaram sem aulas neste ano por causa do fechamento de 60 escolas, a violência também interrompeu serviços como o de coleta de lixo, transporte e até energia elétrica nas comunidades.
A diretora da Rede da Maré criticou a violência das ocupações policiais, assim como os mandados de busca e apreensão coletivos concedidos nessas operações. Ela citou o caso da Cidade de Deus, em novembro de 2016, e do Jacarezinho, em agosto deste ano. Ambos foram suspensos por decisões judicias obtidas pela Defensoria Pública.
– Esse é o resultado de décadas de uma política discriminatória, militarizada e sem controle democrático, que opera à revelia dos direitos de uma parcela do Estado do Rio de Janeiro, relegando-os à condição de cidadãos de segunda classe – afirmou.
Em sua fala, Daniel Lozoya destacou que a crise econômica não pode servir de justificativa para as graves violações de direitos humanos nas favelas – mesmo diante dos indícios de que esta possa ter contribuído para o aumento da violência. Até porque, segundo o defensor, a despeito da situação das finanças do estado, a despesa com a segurança vem crescendo de forma vertiginosa. Além disso, as violações nas operações revelam um padrão na atuação anterior à dificuldade financeira.
– Segundo o relatório do Tribunal de Contas, entre 2012 e 2016, os gastos com segurança praticamente dobraram, chegando neste último ano quase ao mesmo valor dos gastos com saúde e educação somados. A União Federal doou para o estado do Rio de Janeiro, R$ 2,9 bilhões para garantir a segurança nas Olimpíadas. As despesas com a ocupação do Exército no conjunto de favelas da Maré, entre abril de 2014 e julho de 2015, chegaram a R$ 600 milhões, o dobro dos gastos com programas sociais nos seis anos anteriores efetuados pela Prefeitura – ressaltou o defensor.
Shana Santos, do Iser, concluiu a apresentação da denúncia requerendo a CIDH que recomende ao Brasil a adoção de uma série de medidas para resguardar os direitos das pessoas que moram nas favelas. Entre as medidas sugeridas, ela destacou a fixação de um plano de redução de danos para regular as intervenções das forças de segurança nas comunidades, minimizar os riscos para a população dessas áreas e garantir a inviolabilidade das casas dos moradores. Shana também convidou os membros da CIDH para visitar as favelas do Rio e ver de perto a situação.
Reação
Diante da denúncia, os membros da CIDH fizeram uma série de questões aos representantes do estado brasileiro quanto às medidas que possam evitar a violação de direitos humanos. As reações dos integrantes da comissão foram fortes. James L. Cavallaro, por exemplo, classificou como “chocante” o número de pessoas mortas nas operações da polícia neste ano, assim também como os mandados de busca e apreensão coletivos concedidos.
– Queria perguntar se seria concebível um mandado parecido para Ipanema? Não estou falando do Pavão Pavãozinho ou do Cantagalo. Estou falando do asfalto. É possível juntar 15 prédios no filet mignon do Rio e dizer apenas que é [foi concedido] porque alguém ali cometeu um crime ou está traficando? Isso é possível juridicamente? Quero saber se na história do país, algum juiz ou alguma juíza emitiu algum mandado parecido com esse em uma comunidade da classe A? – indagou.
Audiência foi transmitida na página da Defensoria Pública no Facebook. Clique aqui para ver.