Estudos apresentados na Defensoria, em debate sobre o tema, embasaram a formulação de propostas para
a redução das mortes e do racismo institucional nas unidades de Saúde
O risco de morte por violência obstétrica no período da gravidez e do parto e pós-parto é 2,7 vezes maior para mulheres negras do que para as pardas e brancas e isso significa que o racismo institucional (identificado pelo tratamento diferenciado conferido por órgãos e instituições) está presente nas unidades públicas de Saúde como agravante do já preocupante quadro de negligência relacionado a casos do tipo. Em debate sobre o assunto na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ), dados como esse chamaram a atenção dos participantes para a urgência na adoção de medidas voltadas ao enfretamento do problema que, segundo pesquisas apresentadas no encontro, mata cerca de 70 gestantes por ano na cidade carioca e atinge principalmente pessoas de baixa renda como a jovem Rafaela Cristina Souza dos Santos.
Morta aos 15 anos após complicações pós-parto, a moradora da Zona Oeste compareceu a todo o pré-natal na rede pública e ainda assim apresentou problemas apontados por especialistas do setor como absolutamente evitáveis e que foram ignorados nesse acompanhamento, como excesso de peso e aumento da pressão arterial no último trimestre. No dia em que morreu após dar à luz, em 2015, a estudante buscou atendimento médico quatro vezes porque estava passando mal e apesar de seu quadro grave foi mandada para casa em duas delas. Ao retornar a outro hospital na tentativa de ser atendida, foi submetida a procedimentos equivocados e em estado crítico precisou de transferência para a UTI de outra maternidade, onde veio a óbito.
A família procurou a Defensoria Pública e a instituição, além de cobrar das autoridades competentes a efetiva apuração do caso, obteve decisão favorável na Justiça determinando o pagamento de indenização por danos morais aos familiares da jovem. Além disso, foi criado um grupo de trabalho com defensoras públicas, profissionais da Saúde e representantes de organizações da sociedade civil voltado à análise do ocorrido para a formulação de políticas públicas de combate à mortalidade materna e ao racismo institucional. A inciativa também resultou no debate sobre o assunto promovido na Sede Administrativa da DPRJ, na última sexta-feira (17), e o encontro culminou em propostas como a de elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para que o poder público se adeque ao direito de acesso igualitário de todas as mulheres à Saúde universal, integral e de qualidade.
– O debate realizado na sexta-feira é um desdobramento desse grupo de trabalho e teve como objetivo fomentar as discussões sobre as providências que serão adotadas no enfrentamento à mortalidade materna a partir de agora. Tudo o que foi apesentado no encontro por profissionais de Saúde e pesquisadores da área é de extrema importância e nós vamos analisar todas as possibilidades, sendo uma delas a elaboração do TAC – destacou a coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da DPRJ, Flávia Brasil Barbosa do Nascimento.
Pesquisas traçam o perfil das vítimas de mortalidade materna
Três pesquisas apresentadas no seminário “Direito à Saúde e seus avessos – racismo institucional e mortalidade materna” traçaram o perfil das vítimas e uma delas mostra o crescimento no número geral de óbitos (incluindo negras, pardas e brancas) nos últimos três anos e meio: foram 65 em 2015; 62 em 2016; 70 em 2017; e 32 até junho de 2018. Além disso, 28,1% dos casos estão relacionados à hemorragia; o mesmo percentual foi observado em relação às complicações obstétricas indiretas; 15,6% dizem respeito a infecção; e 9,4% à doença do tipo hipertensiva; sendo esse o percentual também para as complicações obstétricas diretas e para causas indeterminadas.
– Se em um primeiro momento o número de mortes não é tão impactante, é importante lembrar que, a priori, essas mulheres não estavam doentes e morreram pelo simples fato de estarem grávidas. Isso é estarrecedor porque há recursos no Município do Rio e ainda deve-se levar em consideração o fato de que 98% desses óbitos acontecem em ambiente hospitalar. É como se um avião com o mesmo número de mortos do time da Chapecoense caísse por ano com gestantes – observou no seminário a médica sanitarista e superintendente de maternidades da Secretaria Municipal de Saúde do Rio (SMS), Carla Brasil, ao apresentar a pesquisa “Mortalidade Materna”.
O mesmo estudo apresentou um recorte de raça mostrando que mulheres negras têm 2,7 vezes mais risco de morte (o que equivale a 183,2% de chances entre os casos de mortalidade materna) do que as pardas (com 64,7%) e brancas (68,4%). E outro dado é o de que a maioria dos casos do tipo acontecem em regiões periféricas, sendo a de Madureira, de Bangu e Santa Cruz as de grande incidência.
Também no seminário foi apresentada a pesquisa “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto” pela pesquisadora Silvana Granado, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Entre outros pontos, ela chamou a atenção para o fato de que 55,3% das mulheres negras entrevistadas no pós-parto, nas unidades públicas de Saúde, eram da classe C e apenas 10,8% de classes A ou B. Em relação às brancas, 47,5% estavam na classe C e 39,4 na classe A ou na B.
Além disso, o estudo realizado em 2011 e 2012, em 191 municípios, mostrou que 38,1% das gestantes negras tinham até sete anos de estudo na vida; que 21,6% delas não tinham companheiro no momento; e que 19,6% peregrinaram em busca de internação para o parto, sendo que 33,2% não tiveram acompanhante em nenhum momento após a internação; e em 67,9% dos casos o pré-natal foi classificado como inadequado.
Sobre as gestantes brancas, 17,7% tiveram até sete anos de estudo; 16,5% não tinham companheiro; 12,2% estiveram em mais de uma unidade de Saúde em busca de internação; 18,9% não tiveram acompanhante em nenhum momento; e em 57,7% dos casos o pré-natal foi classificado como inadequado.
No Estado, 903 mulheres morreram de 2009 a 2013
Já em relação aos casos de mortalidade materna registrados em todo o Estado, a doula Vitória Lourenço apresentou dados obtidos em pesquisas realizadas de 2009 a 2013 e informou que nesse período 903 mulheres vieram a óbito por violência obstétrica. Segundo a palestrante, a maioria delas tinha apenas o Ensino Fundamental (34% das gestantes).
– Também é importante destacar que dois terços das mulheres mortas durante o ciclo da gravidez, ou seja, da gestação e do parto e pós-parto, são negras. Essas mulheres estão morrendo mais e são as que mais sofrem por causa da violência decorrente da má assistência e do racismo institucional – apontou Vitória.
– Essa violência está presente quando o atendimento à gestante é feito só no olhar; ou quando ela não é submetida aos exames necessários e, ainda, diante da falta de atenção às queixas apresentadas à equipe médica ou de enfermagem, entre outras – ponderou a advogada do Fórum Estadual de Mulheres Negras, Klatia Vieira, que mediou o debate.
Para a coordenadora do Núcleo Contra a Desigualdade Racial da DPRJ (Nucora), Lívia Casseres, a formação deficiente dos profissionais de Saúde também contribui para a incidência da mortalidade materna e do racismo institucional.
– Em muitos casos é possível observar, também, que o atendimento é baseado em um determinado tipo de estereótipo sobre o corpo e pelo imaginário social de que as mulheres pretas suportam mais a dor, de que são mais fortes naturalmente. É uma visão muito estigmatizante e preconceituosa e por isso essas pessoas são menos cuidadas nas consultas, obtém menos pedidos de exames no pré-natal e isso faz com que os problemas de Saúde evitáveis passem despercebidos, levando à morte – frisou Lívia Casseres.
Violência obstétrica já levou o Brasil à condenação pela ONU
Ainda no debate foi lembrado o caso de Alyne Silva Pimentel, que em 2011 levou o Brasil à condenação internacional por violação aos direitos humanos das grávidas. Na época, o Comitê para Eliminação da Discriminação Contra Mulheres (Cedaw) – da Organização das Nações Unidas (ONU) – estabeleceu como pena o pagamento de indenização à família da jovem moradora da Baixada Fluminense que, em 2002, morreu cinco dias após dar entrada em um hospital da rede pública. Apresentando uma gravidez de alto risco, ela não recebeu o tratamento adequado e veio a óbito com um quadro de saúde apontado por especialistas como evitável.
A condenação também impôs ao país a obrigação de garantir a todas as mulheres os cuidados obstétricos de emergência necessários à manutenção de sua saúde e própria vida; a punir os responsáveis por violações de direitos reprodutivos; e a oferecer formação adequada aos profissionais do setor.
Texto: Bruno Cunha