A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) intimou o governo Brasileiro após denúncias feitas pela Defensoria Pública do Rio sobre as sistemáticas violações de direitos humanos que há anos prejudicam o atendimento público de saúde no Estado e no Município do Rio. A intimação foi recebida em julho deste ano, com prazo de, no máximo, quatro meses para resposta.
O histórico de problemas de acesso à saúde na região é longo. Em 2018, por exemplo, Glicéia de Oliveira sentiu na pele um medo vivido anos depois por milhares de brasileiros com a pandemia do coronavírus: o da corrida contra o tempo para conseguir um leito de hospital. Glicéia buscava atendimento para sua mãe, Rita Luziete.
Na luta pela vida de Dona Rita, Glicéia usava seu horário de almoço para peregrinar entre os Hospitais da região em uma tentativa desesperada de conseguir a transferência da mãe, internada em estado grave em uma UPA de bairro. Dona Rita precisava de uma vaga em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Desesperada e sem saber a quem recorrer, Gilcéia buscou atendimento na Defensoria do Rio, que prontamente conseguiu a transferência. Cinco dias após a chegada ao Hospital de Emergência, no entanto, Dona Rita morreu e Glicéia, que estava lidando com a morte da mãe, ainda perdeu o emprego com a justificativa de atrasos na hora do almoço.
Para a coordenadora de Saúde e Tutela Coletiva (COSAU) da DPRJ, Thaisa Guerreiro, histórias como a de Dona Rita e Glicéia evidenciam um problema gravíssimo e rotineiro nas unidades de saúde, que causam muito sofrimento não só para as vítimas, mas também para seus familiares.
— Há, em média, 100 (cem) ações ajuizadas mensalmente apenas no Plantão Noturno da Defensoria Pública do Rio solicitando a condenação do Estado e do Município a transferirem, com urgência, seus pacientes para leitos de terapia intensiva. Infelizmente, mesmo com a concessão da decisão liminar, muitos pacientes vêm a óbito, seja porque Estado e Município do Rio descumprem as decisões judiciais, seja porque quando transferem, o fazem de modo extemporâneo, quando os pacientes já estão muito graves e não conseguem mais resistir, afirma a defensora.
Desde 2011, uma decisão judicial em ação civil pública obriga o Estado e Município do Rio a aumentarem a oferta de leitos de terapia intensiva no território fluminense. Ainda de acordo com Thaisa Guerreiro, esse quadro, de violações sistemáticas a direitos humanos básicos, deixa claro três problemas: a insuficiência de leitos intensivos no Estado; a ineficiência na gestão dos leitos existentes; e a inexistência de uma resposta eficiente do Estado Brasileiro na adoção de medidas que equacionem e cessem, em definitivo, as sucessivas e diárias violações aos direitos humanos à saúde e à vida.
- Há anos, aproximadamente 200 (duzentas) pessoas por mês aguardam em uma fila de espera, muitas vezes fatal, por uma assistência digna, o que é inadmissível. Esse cenário contribuiu em muito para a elevadíssima taxa de mortalidade por COVID-19 no Estado do Rio de Janeiro, a qual, mais uma vez, e a despeito das inúmeras ações civis públicas ajuizadas pela Defensoria e pelo Ministério Público do Rio no curso da pandemia, não foi enfrentada de forma adequada pelo Estado Brasileiro — explica coordenadora de Saúde e Tutela Coletiva da DPRJ.
Na petição enviada para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2018 e atualizada em 2022, além de relatar a ineficiência do Estado Brasileiro na adoção de medidas restritivas que contivessem o aumento do contágio da COVID-19, foram narrados casos de pessoas que não conseguiram transferências para hospitais. A Instituição também produziu um compilado detalhado da situação das unidades de saúde durante a pandemia, que agravou ainda mais o cenário já bastante crítico, contribuindo para inúmeras mortes evitáveis. O documento destaca, ainda, a elevada mortalidade de gestantes negras com COVID-19.
Um exemplo atual da dificuldade de atendimento adequado no sistema de saúde é o de um adolescente, portador da síndrome de West, uma doença grave, internado às pressas em uma UPA 24h devido a um quadro de sangramento nasal e pneumonia.
- Esse jovem ficou em uma sala compartilhada com três pacientes com covid-19, necessitando de internação em UTI com urgência, sob risco iminente de morte. A despeito da decisão e do risco que o adolescente corria, Estado e Município do Rio demoraram muito a cumprir a decisão liminar, contribuindo para o agravamento do seu quadro de saúde. — ressalta o defensor público do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, André Castro.
Após o recebimento das intimações enviadas, o Governo do Brasil e as demais partes pertinentes da petição têm um prazo de três meses, prorrogável se necessário, até um máximo de quatro meses, para que apresentem as observações que justifiquem as violações denunciadas.
No documento, a Comissão também informa que o Ministério Público entrou como Amicus Curiae e que a mesma se coloca à disposição para chegar a uma solução amistosa baseada no respeito aos direitos humanos estabelecidos na Convenção Americana.
Texto: Jéssica Leal