Emoldurada pela janela de sua casa, a diarista Ana da Conceição, observa o retrato da tragédia causada pelas fortes chuvas que atingiram a cidade de Petrópolis seis meses atrás. Do outro lado da rua, a menos de 10 metros de distância, uma casa azul se destaca na encosta tomada pelos escombros do local que, um dia, foi a moradia de centenas de pessoas.
Sem paredes na parte da frente, do que resta da casa azul, é possível ver o pano de prato ainda intacto em cima do fogão, como se em algum momento os donos fossem voltar ao local para preparar o jantar. Mas Dona Ana e os outros moradores da rua Waldemar Ferreira da Silva sabem que isso não vai acontecer, pois a estrada que dava acesso à casa, agora faz parte de centenas de toneladas de terra que ameaçam o frágil telhado, que ainda insiste em resistir.
Para a diarista, que convive com a iminência de um novo deslizamento, algo trivial como olhar a previsão do tempo em seu celular, se tornou motivo de angústia. Ela conta que quando chove, não consegue mais ficar em casa e por isso se abriga com parentes e amigos enquanto o sol não volta a surgir no céu de Petrópolis.
— Naquela casa moravam duas pessoas, por sorte elas não estavam quando a chuva chegou. Mesmo quando não chove, tem fim de semana que eu nem fico aqui porque o medo é grande. Está bem de frente para a nossa casa, se desabar, já era, vai engolir tudo isso aqui! — conta.
Cláudia dos Santos também compartilha das mesmas dores. Moradora do bairro Quitandinha, um dos mais atingidos pelas chuvas do começo deste ano, conta que a sua casa foi interditada logo após a segunda enchente, que aconteceu no dia 20 de março. Sem aluguel social, a dona de casa reclama dizendo que já procurou a Defesa Civil diversas vezes, mas que não teve nenhum retorno.
— A minha casa está com rachaduras do chão ao teto, por isso a gente não pode ficar aqui, mas mesmo assim é o único lugar que eu tenho. Até hoje a prefeitura não pagou o aluguel social e a Defesa Civil não faz nada, está muito difícil de continuar me mantendo na casa dos meus parentes, já estamos nessa situação há meses, ninguém vem aqui ajudar a gente, estamos abandonados nessa situação horrível — relata.
As histórias de Ana e Cláudia se cruzaram durante uma visita técnica realizada pela Ouvidoria Externa da DPRJ para ouvir os relatos dos moradores, mapear as áreas sensíveis que ainda estão correndo riscos, e levantar informações para um relatório sobre a real condição em que os moradores estão vivendo.
Durante a visita, as equipes da Defensoria percorreram as comunidades de Getúlio Vargas, Honduras, Caxambu e Rio de Janeiro, onde foi constatado que muitas encostas desabadas continuam sem sinalização de segurança, aparentando risco inclusive aos pedestres que circulam pelas vias de acesso às regiões. Além disso, os moradores também relatam que há diversos locais com materiais cortantes e fiação elétrica exposta.
Para o Ouvidor-Geral, Guilherme Pimentel, o quadro é crítico pois há vegetação crescendo em áreas de deslizamento, ocultando terra fofa com bolsões de ar, minas d’água e outros elementos que levantam temor com relação à instabilidade do terreno para próximas chuvas, que devem ser mais intensas no mês de novembro.
— Nós ficamos estarrecidos ao verificarmos que pouca coisa avançou nesses seis meses, o centro voltou a funcionar, mas as comunidades continuam sem nenhuma assistência! Não fizeram nenhum tipo de obra de contenção nas comunidades e nós encontramos inclusive carros revirados que até hoje não foram retirados. A população está com um medo muito grande das chuvas de novembro e que aconteçam novos desastres, que na verdade são tragédias anunciadas — disse Guilherme.
(Foto: Claudia, moradora do bairro Quitandinha, uma dos mais atingidos pelas chuvas, no quintal de sua casa.)
Seis meses depois das chuvas que provocaram a morte de 234 pessoas e deixaram três desaparecidos, em Petrópolis, na Região Serrana, a Defensoria Pública segue de portas abertas para prestar assistência jurídica a quem buscar reparação pela perda de familiares, a quem ainda necessita de benefícios sociais ou então espera reerguer ou reformar a casa levada pela água e pela lama.
— Houve um período em que precisamos enviar ofícios semanalmente com pedido de informações sobre os cadastros do Estado e do Município para a concessão de Aluguel Social e do Cartão Recomeçar. Ainda há queixas, mas essas estão sendo tratadas por ações individuais, caso a caso — explica a defensoria Livia Correa, do 8º Núcleo Regional de Tutela Coletiva.
Alguns moradores recorreram ao Núcleo Cível de Primeiro Atendimento da Defensoria em Petrópolis para contestar na Justiça a não inclusão nos cadastros de benefícios como SuperaRJ e Aluguel Social, inclusive por terem tido suas casas demolidas pelo Poder Público quase imediatamente após a tragédia.
O grande número de imóveis atingidos pelas chuvas e postos abaixo pela Prefeitura levou a Defensoria a ajuizar ação civil pública junto à 4ª Vara Cível local, que já deferiu liminar proibindo que a derrubada se dê sem aviso prévio aos proprietários ou antigos ocupantes. Há casos, porém, anteriores a essa decisão.
A Defensoria também é autora de outra ação coletiva, que tem por objetivo obrigar o Poder Público a realizar obras estruturais em várias vias da cidade. Além disso, vem cobrando que a Prefeitura recolha escombros acumulados desde 15 de fevereiro.
No final de julho, a Defensoria esteve nos dois últimos abrigos em que ainda viviam um casal de idosos e quatro pessoas de uma outra família. Os locais foram desativados há poucos dias, depois que todos foram finalmente contemplados com Aluguel Social. A visita da Defensoria foi a última de uma série de vistorias nos endereços destinados temporariamente aos desalojados e desabrigados.
Desde as primeiras horas da enchente e dos deslizamentos de terra, defensoras e defensores que atuam em Petrópolis prestaram socorro imediato às vítimas. Já no dia seguinte à calamidade, os defensores percorreram todos os locais indicados como abrigos e escolas pelos Poderes Públicos e se depararam com muitas famílias absolutamente dilaceradas, e com grupos mais vulneráveis de crianças, adolescentes, idosos e deficientes.
— Constatados os principais problemas mais urgentes como a falta de identificação das crianças abrigadas que transitavam sozinhas em espaços comuns, falta de chuveiros para higienização dos desalijados, falta de vigilância noturna nas áreas ocupadas, deficiência na alimentação e medicação aos necessitados, a Defensoria passou a exigir providências imediatas e a fortalecer o diálogo com os entes estadual e municipal — lembra a defensora pública Cristiana Mendes.
Ela destaca também a importância do trabalho dos defensores e defensoras junto ao Instituto Médico Legal, nos dias seguintes à tragédia.
— A Defensoria esteve presente no IML, prestando de modo proativo orientação jurídica e assistência integral, inclusive participando do procedimento de reconhecimento dos corpos, realizando assim, um trabalho ímpar e solidário na restauração da dignidade e da cidadania.
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Texto: Jéssica Leal e Valéria Rodrigues