Decisão judicial inédita garantiu a uma mulher trans já falecida direito a ter a certidão de nascimento e, consequentemente, a de óbito, retificadas com nome e gênero femininos. O pedido foi encaminhado pela família da jovem ao Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e julgado em audiência na Justiça Itinerante desta quinta-feira (19).
— A requalificação civil post mortem é uma maneira de lançar luz sobre uma existência apagada. É uma iniciativa que pode incentivar muitas outras famílias a homenagearem filhos e filhas dando a eles e a elas, mesmo após o falecimento, documentos e uma existência oficial em conformidade com o gênero com os quais se identificavam em vida — explica a coordenadora do Nudiversis, Mirela Assad.
O caso de Samantha, que vivia na cidade de Valença, no sul do Estado, chegou ao Nudiversis por meio do Conselho Municipal LGBT da cidade, dias após morte da jovem, aos 18 anos, no início do mês.
A estudante chegou a dar os primeiros passos para poder participar da terceira ação social de requalificação civil de transexuais e não binaries, realizada no último dia 6, numa parceria entre a Defensoria e a Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Rio. No entanto, dúvidas sobre se o prenome Samantha deveria ou não ser acompanhado de algum outro, atrasou os procedimentos e a jovem não concluiu a inscrição, como conta a mãe da moça.
—Conversamos se seria apenas Samantha ou se seria bacana incluir mais um nome, e a demora fez com que ela não conseguisse fazer a inscrição a tempo. Providenciar, já que ela não está mais aqui, a adequação do nome e gênero nas certidões de nascimento e de óbito conforta meu coração e é uma homenagem a minha filha — afirma Adriana, que no dia 19, quinta-feira, esteve no Centro do Rio especialmente para comparecer à audiência em que o Nudiversis a representou na Justiça com o pedido de requalificação civil.
Por coincidência, o julgamento da ação de requalificação post mortem ocorreu no Dia Nacional da Defensoria Pública e, ainda por acaso, também em evento que faz parte do calendário do Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje), que incluiu atendimento pela Justiça Itinerante, em frente ao Fórum.
— É emblemático e animador que uma sentença tão importante e inovadora possa se dar numa ocasião que reúne tantos magistrados. A requalificação civil, inclusive post mortem, é uma pauta importante da comunidade trans. Muitos e muitas morrem sem assegurar que o nome social se torne oficial, o que só perpetua, para além da vida, a violência que enfrentavam no cotidiano — avalia Mirela Assad.
Uma vez com sentença favorável dada pela Justiça, o caso de Samantha deverá ser encaminhado para o cartório de Nova Iguaçu, onde ela nasceu, responsável pela emissão de um novo registro civil, já com nome e gênero retificados. Em seguida, caberá ao cartório de Valença fazer a adequação da certidão de óbito.
— E então, enfim, teremos dado à Samantha, oficialmente, um nome. Nenhuma existência trans pode ser apagada — conclui a defensora.
Dupla maternidade
A Defensoria também representou, nas audiências da Justiça Itinerante, três casais de mulheres que, desejosas de se tornarem mães, optaram pela chamada “autoinseminação caseira heteróloga”, ou seja, concepção feita fora de ambiente hospitalar, geralmente com uso de seringa para fecundação com sêmen de doador.
Os casais recorreram ao Nudiversis para solicitar à Justiça alvará autorizando o registro da criança em nome das duas mães, independentemente de qual delas tenham carregado a gestação. Em todos os casos, a gravidez já está em curso.
— A fecundação caseira pode ser clandestina, mas acontece diariamente, é uma realidade. A Justiça não pode mais fechar os olhos a isso. Não importa a forma como foram concebidas, essas crianças têm o direito de serem registradas pelas pessoas que decidiram tê-las — explica a coordenadora do Nudiversis, Mirela Assad, que em setembro do ano passado obteve a primeira sentença favorável num caso similar, o que fez muitos outros casais de lésbicas procurarem a Defensoria.
Desde então, pelo menos 40 crianças puderam, ao nascer, serem registradas com o nome de ambas as mães no campo de filiação, delas herdando também o sobrenome. Até então, o direito era assegurado somente aos filhos e filhas gerados por inseminação clínica, desconsiderando a inseminação caseira.
Na petição inicial dos pedidos de alvará judicial, Mirela Assad argumenta ser não sabida “a identidade genética do embrião, no aspecto paterno. Porquanto, não há nenhuma relação de afetividade com o doador do material genético”, tendo a fecundação se dado com “sêmen de doador desconhecido”.