De agosto de 2020 - quando as audiências de custódia voltaram a ser realizadas, após suspensão pela pandemia - a dezembro do mesmo ano, 475 pessoas presas em flagrante relataram ter sofrido agressões, principalmente físicas, na maioria das vezes provocadas por policiais militares e no lugar do fato. O número representa 31% dos 1.920 homens e mulheres entrevistados pela Defensoria Pública do Rio no período. O percentual é bem próximo do registrado no relatório anterior à pandemia (38,3%), antes de as audiências serem suspensas. Além disso, oito em cada dez agredidos eram negros. Em 44% dos casos, havia marcas físicas de agressão.
Esses são alguns dos dados do novo Relatório sobre o Perfil dos Réus Atendidos nas Audiências de Custódia, elaborado pela Defensoria Pública do Rio, e que será apresentado nesta quinta-feira, 9, durante evento online pelo YouTube da DPRJ. Os dados contrastam com a quase absoluta ausência de denúncias de maus tratos entre março e agosto do mesmo ano, meses em que a apresentação dos presos em flagrante ficou suspensa, por conta da pandemia. Segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nesse período, o índice de maus tratos registrado foi de cerca de 1%, pois tinham por base somente informações escritas nos autos das prisões em flagrante.
— Com a retomada das audiências de custódia, percebe-se que o volume de denúncias de maus tratos e torturas se manteve no mesmo patamar que já havíamos identificado em pesquisas anteriores, de cerca de 30% ou pouco mais. Assim, é possível concluir que, durante o período em que as audiências ficaram suspensas, houve clara subnotificação. Isso mostra a importância das audiências de custódia, presenciais, para apuração da ocorrência de tortura – sem elas, não é possível saber se a tortura ocorreu ou não, e, se sim, permitir a tomada de providências, como avaliar de que modo aquela agressão impacta na legalidade da prisão, encaminhamento do custodiado para tratamento médico e investigação sobre a conduta dos agressores — explica a coordenadora do Núcleo de Audiências de Custódia (Nudac) da Defensoria Pública do Rio, Mariana Castro.
Defensoras e defensores públicos atuam em cerca de 85% das audiências de custódia realizadas no Estado. Por meio de formulário específico do Núcleo de Audiências de Custódia, a Defensoria entrevista os custodiados para conhecer detalhes sobre as circunstâncias da prisão e sobre violações de direitos a que tenham sido submetidos.
Os dados constantes em 1.920 formulários de entrevistas aplicados nos últimos cinco meses de 2020 indicam que mais de 90% dos presos são homens; oito em cada dez são pretos ou pardos. O levantamento da Defensoria reuniu também informações sobre o momento da prisão. Apenas seis em cada dez presos foram informados imediatamente sobre a acusação de que eram alvo. Também somente seis em cada dez presos foram comunicados de que poderiam permanecer em silêncio e só falar em juízo.
Seis em cada dez prisões são mantidas
O relatório elaborado pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria analisou também o desfecho de todas as 7.426 audiências de custódia realizadas nos cinco meses seguintes à retomada da apresentação presencial do preso ao juízo, entre agosto e dezembro de 2020. Os dados apontam que pelo menos seis em cada dez pessoas presas em flagrante têm liberdade provisória ou o relaxamento da prisão negados no Estado do Rio de Janeiro.
Em Benfica, no município do Rio, onde ocorreu a grande maioria das audiências de custódia nos cinco meses analisados, 65% das prisões em flagrante foram convertidas em prisão preventiva ou domiciliar. Em Volta Redonda, a negativa de liberdade ocorreu em 69% das audiências. Em Campos, metade dos presos em flagrante obtiveram liberdade. Na média, as três centrais de custódia — que cobrem todo o Estado — mantiveram a prisão em 63% dos casos.
— A lei prevê que, pelo direito à presunção de inocência, a prisão antes da sentença deve ser excepcional, mas, na prática, vemos que ela é extremamente comum, e funciona, na verdade, como um “castigo” pela acusação, sem que se saiba se a pessoa é realmente culpada ou não. Apenas por estar sendo acusada, a pessoa presa já fica presa; é presumida culpada, e não inocente — ressalta a defensora Mariana Castro.
O levantamento detalha que 34,5% dos casos com informação sobre o tipo de acusação tiveram por base a Lei de Drogas. Furtos correspondem por 17,6% das ocorrências; roubos, simples ou não, por 14%, seguidos de casos de violência doméstica (10,6%).
— Verifica-se que um número elevado de pessoas acusadas de delitos sem gravidade, sem violência ou grave ameaça ou uso de arma de fogo, acabam, mesmo assim, mantidas presas preventivamente, como casos de furto de alimentos ou itens de higiene. Isso contribui enormemente para a superlotação das prisões, agravando o que o STF já reconheceu como um estado de coisas inconstitucional. É necessário que se reconheça que, ao encarar a prisão preventiva como a regra e não como a exceção, se está contribuindo para essa situação de violação de direitos, e descumprindo a decisão do STF. — acrescenta a coordenadora do Nudac.
Saúde, escolaridade e renda
O formulário da Defensoria inclui ainda questões como a saúde da pessoa presa em flagrante, por exemplo, e traça o perfil socioeconômico do custodiado.
“Nas três centrais de custódia, dentre os casos com informação, apenas 23% em Benfica, 17% em Campos e 27% em Volta Redonda disseram ter alguma doença. Dos/as custodiados/as que apresentaram alguma doença, respectivamente nas três centrais, 29%, 41% e 30% tiveram a liberdade provisória concedida ou a prisão relaxada, enquanto que em sua maioria nas três centrais de custódia tiveram a prisão em flagrante convertida em prisão preventiva, o que indica que, em regra, o fato da pessoa presa estar com a saúde fragilizada não impede que seja colocada em ambientes altamente insalubres, como a prisão”, destaca o relatório.
Cerca de 60% dos que declararam escolaridade não passaram do ensino fundamental. Além disso, a grande maioria tem entre 18 e 40 anos de idade, sendo que mais da metade dos homens e mulheres que prestaram informação disseram ter filhos com até 12 anos.
— A Defensoria vem publicando relatórios com o perfil das pessoas que passam pelas audiências de custódia desde 2015 diante da importância de demonstrar, com dados, quem são os ingressantes no sistema prisional. Mais uma vez, verifica-se que são pessoas de baixa renda, trabalhadores informais, com apenas o ensino fundamental. É preciso que a situação socioeconômica seja considerada na análise da prisão em flagrante pelo juiz, que deve olhar para a situação a partir da realidade dos presos, e não da sua própria realidade. A pandemia agravou ainda mais essa situação — destaca a diretora de Estudos e Pesquisa de Acesso à Justiça, Carolina Haber.
Ao responder ao formulário aplicado pela Defensoria, 93% de homens e mulheres custodiados em Benfica, 91% em Campos e 85% em Volta Redonda disseram que trabalhavam antes de serem presos. Dos casos com informação, 81%, 93% e 83%, respectivamente, ressaltaram que o trabalho era informal. A maioria obtinha renda entre meio salário mínimo e um salário mínimo e meio por mês.
Além disso, a Defensoria buscou colher, entre os custodiados, informações sobre uso de droga, reincidência e agressões impostas por agentes do estado.
— Em geral, são pessoas sem antecedentes, mas que permanecem presas pelo tipo de crime que praticaram, seja o roubo, que é considerado violento, sejam os crimes da Lei de drogas, que no imaginário dos integrantes do sistema de justiça estaria sempre associado a uma situação de violência, apesar de não trazer essa característica na descrição dos tipos penais — salienta a diretora de pesquisa da Defensoria.
Dentre as pessoas presas em flagrante que se dispuseram a prestar informação, 56% admitiram usar drogas, sendo “a maconha como a droga mais usada e, em segundo lugar, a cocaína: 48% e 21%, em Benfica; 62% e 21% em Campos e 51% e 25% em Volta Redonda, respectivamente. E 15% dos custodiados da central de Benfica reportaram fazer uso de crack. Dos custodiados que informaram que usam drogas, 53% em Benfica, 81% em Campos e 54% em Volta Redonda disseram que são dependentes, considerando os casos com informação”, detalha o relatório da Defensoria.
As informações reunidas nos 1.920 formulários permitem deduzir que 58% dos custodiados entre agosto e dezembro de 2020 já haviam sido presos. Apesar de 71% serem primários e terem praticado em sua maioria crimes sem violência ou grave ameaça, 65% dos flagrantes foram convertidos em prisão preventiva ou domiciliar. Cerca de 23% do total passaram pelo sistema socioeducativo antes dos 18 anos.
Mães e mulheres
Mulheres são menos de 10% das pessoas presas em flagrante. Dentre as 119 custodiadas no período compreendido entre agosto e dezembro de 2020, pouco mais da metade (56) conseguiu liberdade. Dentre as 53 mães com filhos de até 12 anos, 27 foram liberadas.
“Do total de casos com informação, 59% em Benfica, 67% em Campos e 80% em Volta Redonda indicaram ter filhos/as menores de 12 anos. Das que indicaram ter filhos/as, 65% em Benfica, 70% em Campos e 42% em Volta Redonda receberam a liberdade provisória”, diz o relatório. “Considerando as três centrais de audiência de custódia, 59% das mulheres entrevistadas receberam a liberdade provisória, enquanto que com relação às mulheres com filhos menores de 12 anos, esse percentual é de 60%.”
— Ainda precisamos reunir esforços para a mudança da cultura do encarceramento, sobretudo nos casos de mulheres gestantes, lactantes ou mães de crianças com até 12 anos ou pessoas com deficiência. Considerando que a maioria dos crimes que envolvem as mulheres levadas às audiências de custódia refere-se a furto e crimes da lei de drogas, delitos que não são praticados com a violência ou grave ameaça, entendo que é preciso desconstituir a ideia de ter o encarceramento como principal medida. É preciso que as decisões de prisão levem em consideração o melhor interesse da criança, além das consequências extremamente nocivas e traumas psicológicos que podem ser gerados a mulheres nestas condições de gestantes e lactantes. Neste sentido, o relatório apresentado sobre as audiências de custódia envolvendo o período da pandemia (agosto a dezembro de 2020) é mais que necessário para revisitarmos e discutirmos a política de encarceramento adotada em nosso país — afirma a coordenadora de Defesa Criminal, Lucia Helena Oliveira.