Homens (96%), quase sempre pretos ou pardos (cerca de 80%), mais da metade com idades entre 18 e 40 anos, que não chegaram ao ensino médio (71%), agredidos física e/ou psicologicamente no ato da prisão, na maioria das vezes por policiais militares (85,6%). Esse é o perfil das 1.250 pessoas presas submetidas a tortura e maus tratos, cujos relatos chegaram ao Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria Pública do Rio entre junho de 2019 e agosto de 2020. Os dados estão no relatório que será divulgado nesta sexta-feira (17), às 14h, no evento "Pelo Fim da Tortura: o Impacto dos Relatos de Agressão nas Sentenças Criminais", com transmissão pelo YouTube da Defensoria.
Apesar de nove em cada dez vítimas afirmarem ser possível identificar os autores e de 35% delas terem sofrido lesões aparentes, somente 20% decidiram adotar medidas administrativas ou judiciais contra o Estado ou quem os agrediu. Os dados fazem parte do segundo relatório produzido pela Defensoria do Rio desde a criação do Protocolo de Prevenção e Combate à Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, que prevê a notificação obrigatória ao Nudedh dos casos registrados por defensores e defensoras públicos em todo o Estado.
O relatório, além de analisar o perfil das vítimas e as circunstâncias da violência a que foram submetidas, também se debruçou sobre os processos criminais em que esses presos foram réus, com o intuito de identificar se e como, na sentença, os relatos de agressão foram levados em conta. Considerando os processos em que não há menção a agressões nem na audiência de custódia, nem no interrogatório ou na fundamentação da sentença, em 378 (70,8% do total) verificou-se que, em alguns desses momentos, o(a) juiz(a) tomou conhecimento da alegação feita pelo(a) acusado(a).
Desses 378, em 175 a resposta para a pergunta “Se houve agressões físicas/torturas, há lesão aparente?” foi sim, ou seja, 46,3% do total. Desse universo, em 16 há menção da agressão na sentença (9,1%), sendo três de absolvição e 13 de condenação. Isso significa que em cerca de 90,9% dos casos em que há lesão visível decorrente da agressão denunciada, o juiz sequer menciona a agressão na sentença.
Até maio último, 534 desses processos já tinham sido julgados em primeira instância, dos quais 467 resultaram em condenação total ou parcial – em 56% dos casos com base na Lei de Drogas. O levantamento identifica também os casos em que os juízes utilizaram a Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ("o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação") para legitimar a palavra dos policiais, na ausência de outras testemunhas.
A Súmula 70 é mencionada em 75% das condenações pela Lei de Drogas e em cerca de 15% das prisões por roubo.
— A partir da leitura dos termos de audiência de custódia e das sentenças, buscamos identificar todos os casos em que há o registro do relato de agressão para ter certeza que de fato o juiz tomou conhecimento dessa ocorrência. Porém, o que se percebe é que esse relato vai desaparecendo ao longo do processo e acaba sendo considerado irrelevante para o julgamento, não sendo tomada nenhuma providência mais concreta — explica a diretora de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça, Carolina Haber, que coordenou o trabalho.
Conforme detalha um trecho do relatório, “Foi verificado se, na fundamentação da sentença, o(a) juiz(a) considera o relato de agressão, tendo sido identificados 28 casos; porém, em praticamente todos, apenas para desqualificar a versão do(a) acusado(a) ou afirmar que o laudo não confirmou as agressões alegadas. Do total de 22 casos em que as agressões foram mencionadas para desqualificar a palavra dos acusados, ou, então, para afirmar que os exames realizados concluíram que o acusado não possuía qualquer lesão compatível com as agressões relatadas, é possível identificar alguns com a afirmação de que, tendo ocorrido posteriormente à apreensão, a agressão não seria suficiente para invalidar o fato criminoso ou levar ao descrédito os informes dos agentes públicos. Nesse sentido, eventuais vícios do inquérito não contaminariam a ação penal”.
— No primeiro relatório observamos as medidas adotadas pelos juízes da custódia diante dos relatos de agressão, identificando que, na maioria das vezes, ocorre o encaminhamento a outros órgãos responsáveis pela apuração das situações relatadas em audiência, como a Corregedoria da PM ou a Promotoria de Investigação Penal junto à Auditoria Militar. As agressões sofridas, no entanto, não são consideradas para relaxar a prisão ou conceder a liberdade provisória. Nesse segundo relatório, a proposta foi verificar se o juízo natural tomava alguma medida em relação as agressões, mas de fato, nada é feito — conclui Haber.
Segundo ela, “a audiência de custódia segue sendo uma importante conquista no controle dos casos de agressão e tortura, mas ainda é preciso avançar e reforçar os mecanismos que garantam que esse relato seja de fato investigado e considerado no julgamento do caso”.
— A Súmula 70 do TJRJ, que autoriza a condenação de réus quando a prova se restringe a depoimento de policiais, vem servindo há mais de uma década para declarar “guerra às drogas”, levando ao cárcere uma maioria de jovens negros e pobres. A pessoa presa em flagrante por tráfico de drogas, ainda que negue a prática do delito e/ou alegue ter sido submetida a agressões no momento da prisão, ou mesmo tortura, sofre violações de direitos ao não ter suas afirmações levadas em consideração, na maioria das vezes. É preciso um grande esforço da defesa para dar credibilidade às denúncias de maus tratos, bem como para provar a inocência daqueles envolvidos com denúncias relacionadas a crimes da Lei de Drogas — resume a coordenadora de Defesa Criminal, Lucia Helena de Oliveira.
Cerca de 93% de todos os relatos de agressões foram enviados ao Nudedh pelo Núcleo de Audiências de Custódia da Defensoria. A maior parte dos registros é anterior a março de 2020, quando, por conta da pandemia de Covid, as audiências de custódia foram suspensas e os juízes passaram a analisar a prisão em flagrante sem a presença da custodiado, inviabilizando a possibilidade de entrevista privada com o defensor público.
Chutes (477) e socos (438) foram os tipos de agressão mais mencionados pelos presos. As medidas, administrativas ou judiciais, contra os agressores tomadas com o consentimento da vítima ou seu representante legal foram, principalmente, pedido de instauração de investigação (227), ajuizamento de ação indenizatória (185) e representação por falta funcional (155).
— A pesquisa indica que a resposta penal não leva em consideração todas as evidências apuradas no processo, mas, em sua maioria, apenas legitima um sistema penal seletivo, na medida em que não há qualquer esforço para investigar os abusos e excessos praticados pelos agentes do Estado ou qualquer preocupação em restaurar a legalidade das situações retratadas — ressalta a defensora pública Carla Vianna, do Nudedh.
A defensora complementa que é preciso refletir “acerca da idoneidade da prova que se produz para fundamentar a condenação dos réus que são agredidos pelos mesmos agentes cujos depoimentos ordinariamente embasam a sentença”, como permite a Súmula 70.
O primeiro relatório após a criação do Protocolo de Prevenção e Combate à Tortura da Defensoria Pública do Rio havia reunido 931 denúncias de tratamentos desumanos praticados contra pessoas presas entre agosto de 2018 e maio de 2019, indicando média de três agressões de forma física ou psicológica por dia durante o período pesquisado. Do total de denúncias, 903 (ou seja, 98%) foram feitas pelas próprias vítimas — sendo a maioria (96%) durante a audiência de custódia.
Acesse aqui a pesquisa na íntegra.