Palestrantes analisam como o preconceito racial, religioso e de gênero pode
afetar negativamente os mais vulneráveis e o que pode ser feito para amenizar os impactos

 
            A 4ª Conferência Internacional sobre Acesso à Assistência Jurídica em Sistemas de Justiça Criminal (ILAC) chega ao seu quarto e último dia de painéis - antes da sessão de encerramento nesta sexta (18) - trazendo uma importante agenda: a discriminação racial, de gênero, étnica, religiosa, e suas consequências. Norteado pelo tema central “Combate à Discriminação Étnico-Racial Sistêmica”, especialistas discutiram o aprisionamento de mulheres, a violência policial e a importância da representatividade via entidades da sociedade civil, entre outros temas relevantes para a realidade brasileira e mundial. Como nos dias anteriores, foram três painéis de debates sobre o mesmo assunto, distribuídos de modo a atender os diferentes horários de cada região do mundo.
 
Violência e representatividade
      O painel voltado para as Américas teve início com o depoimento impactante de Ana Paula de Oliveira, da ONG Mães de Manguinhos. Vítima da violência policial - seu filho Jonathan, de 19 anos, foi assassinado pela polícia em 2014 - ela ressaltou a importância do Fórum Social de Manguinhos (que reúne pessoas com direitos violados), seja no apoio psicológico, seja na facilitação do acesso à justiça. “A maioria dos moradores da favela não conhece seus direitos e não sabe o que fazer quando eles são violados.”
 
            Ela observa que vítimas de violência policial também tendem a não ir à delegacia por medo de prisão ou retaliação, o que acaba resultando na ausência de qualquer investigação. “Daí a importância de haver um defensor na delegacia que possa garantir o nosso direito de reportar um crime e ser tratado com respeito.” Outro ponto ressaltado por Ana Paula foi a importância da chamada “APDF das favelas”, que suspendeu as ações policiais durante a pandemia, resultando numa redução de 73% no número de homicídios. 
 
            Episódio de violência policial igualmente abordado, desta vez pela palestrante Masha Lisitsyna, diretora jurídica sênior do Núcleo de Justiça Criminal da Open Society Justice Initiative, foi o da “sala vermelha”, que envolveu a tortura de jovens negros e favelados dentro de um quartel do Exército. O caso, que ainda aguarda um desfecho, ganhou notoriedade, e pode mudar os rumos na forma como esse tipo de violência é tratada no Brasil por ter invocado, na disputa, o uso de padrões internacionais.
 
            A Associação de Defensores Públicos Negros (Black Public Defender Association), da qual é cofundadora e presidente, foi tema da palestra de April Frazier Camara. Ele ressaltou a importância da organização para a representatividade da comunidade negra estadunidense, que também é alvo de violência policial há décadas.
 
Sistema de fiança
             Os participantes da conferência tiveram a oportunidade de conhecer um pouco do sistema prisional filipino, o mais superlotado do mundo, com uma taxa de ocupação de 350%. Raymund E Narag, Professor Adjunto da Escola de Justiça e Segurança da Universidade de Southern Illinois, esclarece que isso se deve ao excesso de burocracia e à pobreza generalizada, uma vez que 53% dos presos poderiam sair sob fiança (muitas vezes de valor irrisório), o que não acontece por precariedade financeira.
 
            As políticas públicas equivocadas de combate às drogas também têm papel importante nesse cenário, considerando que os crimes relacionados ao tráfico e ao consumo de entorpecentes são responsáveis por 70% das prisões. Outra questão relevante é o uso e duração do mecanismo de prisão preventiva. “A estadia média nesse caso é de 529 dias, mas 20% chegam a ficar presos cinco anos ou mais.”
 
            Em geral, as mais pobres e com menos escolaridade tendem a ficar presos por mais tempo, da mesma forma que mulheres e LGBTQI em relação aos homens e, curiosamente segundo Narag, os muçulmanos em comparação aos católicos.
 
            Para lidar com a situação de superlotação e reincidência, o governo planeja reformar o sistema de pagamento de fianças por meio de uma triagem dos presos, condições facilitadas de pagamento, monitoramento, e assistência social após a soltura.
 
Perseguição a ativistas e à mídia
             O primeiro painel do dia foi centrado na militarização e conflitos envolvendo minorias étnicas ou religiosas, sobretudo nas áreas de fronteira de países asiáticos, conforme relatado por Patrick Burgess, cofundador e presidente da Asia Justice and Rights (AJAR). “Em determinadas regiões da Tailândia, Filipinas, Indonésia, Myanmar, entre outros, há muita discriminação, o que leva a conflitos e à dificuldade de oferta e acesso à assistência jurídica”, lamenta. A perseguição de advogados e ativistas e o cerceamento da mídia também são pontos de preocupação.
 
            Em alguns países, observa-se a volta do militarismo e do totalitarismo, que fazem uso de poderes emergenciais para abusar dos direitos humanos. Na Tailândia, por exemplo, foram formados comitês para tratar dos impactos da COVID-19, mas esses colegiados estão sendo integrados por membros das forças armadas, que tendem a prestar pouca satisfação à sociedade, seja em relação às medidas tomadas ou à forma como os recursos - por vezes volumosos - são utilizados.
 
            Para agravar ainda mais a situação, durante a pandemia, os campos de refugiados foram fechados para o mundo exterior, tornando praticamente impossível conseguir informações sobre os moradores e oferecer suporte legal. “Com a pandemia, os países estão muito focados em si. Poucos olhos se voltam para o mundo em desenvolvimento; com isso, avanços que levamos anos para construir estão retrocedendo em questão de meses”, resume Burgess.
 
Mãos dadas
             Pornpen Khongkachonkiet, Diretora da The Cross Cultural Foundation (CrCF), falou sobre a situação específica da Tailândia, país majoritariamente budista de 70 milhões de habitantes marcado por conflitos com uma minoria muçulmana de cerca de 2 milhões de pessoas que vivem na fronteira com a Malásia.
 
            Ela salienta que o país passa por um processo de democratização muito difícil, sendo governado por militares que “andam de mãos dadas com a monarquia” e fazem uso do poder para perseguir opositores. A Suprema Corte decretou lei marcial e tem agido contra as minorias do sul. “O governo começou a fazer prisões e cometer abusos sem dar satisfação. Milhares de pessoas já morreram de 2004 até hoje”, diz Khongkachonkiet.
 
            Para atender a essa minoria, foi criado um centro de ativismo muçulmano que atua no sul do país e reúne jovens advogados, oferecendo serviços que vão além da assistência jurídica, como tratamento psicológico para vítimas de tortura. A ideia, explica a ativista, é ter um espaço seguro para que essas pessoas tenham um pouco de dignidade.
 
Trauma de gerações
             Sobre a experiência dos aborígenes, David Woodroffe, oficial jurídico principal da Agência de Justiça Aborígene do Norte da Austrália (NAAJA), relatou muito preconceito e dificuldades de acesso à justiça. “Eles moram em comunidades distantes que não têm acesso a serviços básicos”, assinalou.
 
            Em sua opinião, o sistema judicial australiano deveria levar em conta as características específicas desses povos ao determinar sentenças e encaminhar processos, o que não acontece. Há, segundo Woodroffe, um trauma de gerações que vem se perpetuando e que teve origem na colonização. Fruto desse trauma e uma das principais barreiras de acesso à justiça é a língua, que também dificulta a integração.
 
            Os povos aborígenes sofrem ainda com o superencarceramento e péssimas condições de saúde, o que leva a uma maior incidência de doenças e expectativas de vida consideravelmente inferiores à média. Apesar disso, o seu bem-estar não parece ser prioridade do governo, segundo o representante da NAAJA. Durante a pandemia, a organização lutou para continuar mantendo direitos básicos de assistência jurídica para os aborígenes. Outras organizações também têm se dedicado a discutir esses temas a fim de reduzir o super encarceramento e a discriminação sistêmica. 
 
Condenados à pobreza
             Na Índia, a grande maioria dos presos integra grupos minoritários étnicos, religiosos ou menos favorecidos financeiramente. “Há um preconceito estrutural no sistema de justiça indiano que se perpetua”, afirma Preeti Pratishruti Dash, Sócia do Projeto 39A, da National Law University de Nova Délhi. Ela relata violência policial e torturas, bem como a falta de informações básicas aos réus.
 
            É comum que os acusados por crimes hediondos contratem advogados privados e, para tal, vendem tudo que possuem. Sem recursos e alternativas, acabam condenando a família à pobreza. Entretanto, em muitos casos, essas pessoas só vão conhecer o advogado na sala de audiência, e não raramente acabam condenadas à morte. Às famílias, além dos prejuízos financeiros, resta o enorme trauma psicológico.
 
            A organização 39A faz a defesa gratuita de grupos vulneráveis e busca dados estatísticos sobre o sistema prisional, perícia e tortura, “tarefa difícil na maioria dos países em desenvolvimento”, opina Dash.       
 
Preconceito étnico
             Na segunda sessão do dia, voltada para Europa, África e Oriente Médio, Bruno Min, diretor jurídico da organização Fair Trials, lembrou que no velho continente os imigrantes são frequentemente considerados culpados por qualquer tipo de problema social. Ele cita o caso específico dos ciganos que vivem no leste europeu e que sofrem imensa discriminação, sobretudo na República Tcheca e Bulgária. “Esse é o tipo de preconceito que raramente é reconhecido.”
 
            Os governos europeus têm demonstrado pouco interesse em produzir e divulgar dados concretos em relação a esses grupos de minoria étnica - bem como ao preconceito sofrido por eles. Segundo Min, essa é uma maneira de negar a realidade de discriminação que existe no continente, com efeitos óbvios sobre o acesso a sistemas de justiça. “Existe também preconceito entre os próprios advogados, que resistem em atender esses indivíduos sob a alegação de que seriam pessoas ‘difíceis de lidar’, e que dispõem de poucos recursos financeiros para pagar por assistência jurídica”, acrescentou.
 
            No encerramento de sua apresentação, o especialista aproveitou para apelar aos representantes da sociedade civil para que ajam de forma mais efetiva no sentido de documentar e procurar conhecer mais a realidade desses grupos.
 
Passado marcante
             Na África do Sul, apesar das mudanças que vieram com o fim do regime de Apartheid, persistem desafios relacionados ao ódio racial. “Ainda ocorrem muitos incidentes que evidenciam a segregação no país”, analisa Dunstan Mlambo, juiz presidente da Divisão de Gauteng do Supremo Tribunal da África do Sul, acrescentando que a pandemia serviu apenas para exacerbar essas diferenças.
 
            Ele observa que a Constituição deixa claro o direito à igualdade e à dignidade humana, mas não é isso que se vê na prática. “A sociedade sul-africana ainda precisa se livrar das engrenagens do Apartheid.”
 
            Exemplos de discriminação estão em toda parte: nas operações policiais em bairros de maioria negra, dificuldades de acesso à assistência jurídica adequada e a empregos de qualidade. “O racismo influencia os salários e até a probabilidade de o indivíduo conseguir um empréstimo no banco.”
 
            Felizmente, há várias iniciativas para ajudar os mais vulneráveis partindo de organizações não governamentais, do governo e de comitês formados em nível comunitário. Para Mlambo, transformação é a palavra chave. “É preciso mudar o mindset e a maneira como os negócios são conduzidos no dia a dia. Precisamos usar o nosso conhecimento histórico para garantir que as coisas não se repitam.”
 
            Mas talvez o maior desafio, diz ele, seja estruturar uma rede maior de filantropia, porque o racismo estrutural não vai ser vencido da noite para o dia. “Precisamos arregaçar as mangas e trabalhar.”
 
Violência policial
             A violência policial é um problema crônico no continente africano, prática essa que foi amplificada durante a pandemia do Coronavírus em diferentes países. No Quênia, assinala Hussein Khalid, diretor executivo da organização HAKI Africa, mais de 50% dos assassinatos na costa nesse período podem ser atribuídos à polícia. “Termos insistido que a pandemia não pode servir como justificativa para a suspensão dos direitos individuais previstos na Constituição, e que a polícia, na verdade, tem o dever de garantir esses direitos.” 
 
            Esforços estão sendo angariados para promover uma maior responsabilização dos policiais por seu comportamento violento, mas ainda se vê poucos serem punidos. Ao mesmo tempo, Khalid enxerga no governo uma atitude de proteção a esse comportamento errôneo. Por fim, ele chama a atenção para a corrupção dentro e fora da polícia. “Vemos recursos serem utilizados de maneira errada, privando de ajuda aqueles que realmente precisam.”
 
Trabalho necessário
             Hanen Fathallah, diretora jurídica da International Legal Foundation - Tunísia, enfatizou, durante sua exposição, a necessidade de proteger grupos mais vulneráveis da discriminação. Na Tunísia, ela cita como exemplo um ataque terrorista em que um suspeito foi preso pelo simples fato de ser muçulmano e usar barba, tendo sido detido por vários dias sem sequer saber do que estava sendo acusado. “Esse é apenas um exemplo do que acontece por aqui. Por isso é importante que os advogados entrem em ação o quanto antes.”
 
            Fathallah argumenta ser necessário estudar essas situações e envolver as pessoas de forma a garantir direitos a essas pessoas. Da mesma forma, é preciso trabalhar para que a Defensoria Pública de fato as proteja. Por meio de reuniões, a ILF tem buscado para elevar os níveis de conscientização dos mais vulneráveis sobre abusos, além de coordenar assistência jurídica. “Temos um caminho longo a seguir, mas estamos dispostos a continuar trabalhando com o Ministério da Justiça, a sociedade civil e outros atores para reduzir as injustiças e a discriminação na Tunísia.”
 
Crimes da mulher
             Uma pesquisa inovadora sobre o aprisionamento de mulheres em Serra Leoa revelou que 62% cumpriam prisão preventiva em função da inflexibilidade nas condições de fiança. Essa é a principal causa da superlotação das prisões, que combinada ao acesso limitado à água e ao saneamento, contribui para o avanço da COVID-19.
 
            A pobreza é fator determinante para o encarceramento feminino excessivo no país: 71% das entrevistadas afirmaram que antes de ir para a prisão só podiam pagar uma ou duas refeições por dia. Quase metade era a principal fonte de renda da família, e 88% cuidavam de pelo menos uma criança. Trinta e quatro por cento foram detidas por crimes econômicos ou de pequena importância, muitas vezes cometidos para garantir a sobrevivência.
 
            O estudo também revelou que a maioria das mulheres encarceradas sofreu violência sexual e de gênero. Quase metade das entrevistadas também indicou ter sofrido de depressão, e 40% de ansiedade, antes do encarceramento. “Essas mulheres foram vítimas de um sistema que as aprisiona ao invés de fornecer tratamento”, diz Sabrina Mahtani, cofundadora e membro do Conselho da organização AdvocAid, que apresentou a pesquisa. O levantamento revela, porém, que a saúde mental da ré quase nunca é levada em conta na sentença.
 
            O encarceramento tem um impacto altamente negativo sobre a saúde mental dessas mulheres, tanto que 54% relataram um problema desse tipo que começou ou piorou durante a detenção. A AdvocAid tem apelado ao governo de Serra Leoa para libertar os presos vulneráveis, de baixo risco e que aguardam julgamento. No entanto, ninguém foi libertado até o momento.
 
Encerramento
             Nesta sexta-feira dia (18), será realizada a sessão de encerramento da conferência, com tradução em Árabe, Inglês, Francês, Espanhol e Português e participações de André Castro, da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro; Diego García-Sayán, Relator Especial da ONU para a Independência de Juízes e Advogados; Zaza Namoradze, Diretor da Open Society Justice Initiative (Berlim); Dunstan Mlambo, Presidente da Divisão de Gauteng do Supremo Tribunal da África do Sul; Jennifer Smith, Diretora Executiva da The International Legal Foundation (ILF); Stella Maris Martinez, da Defensora Pública Geral da Argentina e Representante da Nações Unidas. Acompanhe a nossa cobertura nas redes sociais!
 
 
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