“O racismo institucional é um conceito muito complexo, que nasceu com a força de duas questões essenciais: a permanência e os legados do colonialismo que o Estado perpetua e as contínuas tentativas de abafar o movimento e a organização autônoma tanto do povo negro quanto do povo indígena.”. A frase da coordenadora do projeto POLITCS Silvia Maeso marcou o primeiro dia de encontro do “Colóquio Internacional: racismo institucional, sistema de justiça e políticas públicas no Brasil e no Peru”, ao ressaltar a importância de um olhar mais aprofundado para as raízes de um problema ainda tão presente na sociedade atual. 

O defensor público-geral Rodrigo Pacheco falou sobre a importância da realização do evento na agenda antirracista da Defensoria, que tem se intensificado ainda mais no último ano, após a criação da Coordenação de Promoção de Equidade Racial (Coopera), que pretende incentivar ações práticas que promovam a igualdade racial dentro e fora da instituição. Segundo Rodrigo, a ação surgiu de uma necessidade de que o debate racial fosse mais acentuado na DPRJ, e tem dado resultados positivos. Um número marcante é o aumento de 500% no número de inscritos cotistas no XXVII Concurso para a Defensoria Pública, atual concurso em andamento. 

- Tradicionalmente, a Defensoria tinha um olhar muito externo para a agenda antirracista, combatendo a violência institucional, policial, e todas as outras que transitam no âmbito racial. Mas era preciso ter um olhar interno, e estamos tentando fazer o ‘dever de casa', porque se a Defensoria cobra muito uma postura antirracista dos demais órgãos e da sociedade em si, ela também precisa ter uma coerência internamente - ressaltou Rodrigo.

Durante o evento, que se dividiu nos dias 8 e 9 e foi transmitido pelo canal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) no YouTube, representantes de diversas outras instituições também puderam contribuir com a apresentação de dados, pesquisas, estudos e reflexões sobre os respectivos temas.  Durante as tardes foram apresentados e debatidos os artigos e casos selecionados por edital, que abordavam o racismo institucional, genocídio da população negra e antirracismo no sistema de justiça.

“Policiamento racial, sistema de justiça e produção de dados"
A mesa “Policiamento racial, sistema de justiça e produção de dados", apresentada no dia 8, trouxe como convidados a coordenadora de Defesa Criminal, Lucia Helena; a professora e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (GEVAC) do departamento de sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Jacqueline Sinhoretto; o professor da Pontifícia Universidade Católica do Peru e ex-chefe de segurança cidadã do Instituto de Defesa Legal Peruano, César Bazán; e a investigadora docente da Universidade do Pacífico, Mariela Noles Cotito. O debate  foi mediado pela secretária-executiva do Fórum de  Justiça, Ana Paula Sciamarella.

Jaqueline Sinhoretto, da Universidade São Carlos, por exemplo, abordou o impacto do policiamento ostensivo na produção do racismo institucional na segurança pública do Brasil. De acordo com o estudo apresentado, desenvolvido nas cidades de Minas Gerais e São Paulo, pessoas negras têm chances significativamente maiores de serem presas em flagrante ou se tornarem vítimas de letalidade policial do que pessoas brancas. A situação fica ainda mais grave quando, nas audiências de custódia, o fenômeno chamado de “filtragem racial” é ratificado pelo sistema de justiça e, por sua vez, se torna uma tecnologia do policiamento ostensivo, na medida que caracteriza o modus operandi de um dos principais órgãos de segurança do país.

Nesse sentido, ao relembrar a chacina que ocorreu na favela do Jacarezinho (RJ) no último mês de maio e resultou na morte de 29 pessoas, a Coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública, Lúcia Helena de Oliveira, ponderou: “A polícia não pode servir para destruir vidas. O papel da polícia é nos proteger”. Apesar de reconhecer os avanços conquistados nas últimas décadas no que tange ao debate racial e ao acesso de pessoas negras a espaços anteriormente negados, ela lamentou o fato de o encarceramento no Brasil atingir em maior parte as pessoas negras, e afirmou que ainda há um longo caminho a ser trilhado.

- O nosso cárcere, lamentavelmente, tem cor. E a cor é a da pessoa negra. Quando a gente se pergunta o que queremos e esperamos da segurança pública, a resposta não pode ser diferente daquela que trabalha segurança pública com Direitos Humanos. Esses setores não podem estar em um campo de guerra, porque quando ocorre uma chacina como a do Jacarezinho toda a sociedade perde. Não há vitória, porque não queremos a naturalização da violência - ressaltou Lúcia Helena.

“Juventude, Racismo institucional e políticas de segurança pública”
Já no dia 9, houve a mesa “Juventude, Racismo institucional e políticas de segurança pública” estiveram presentes a jornalista investigativa de segurança pública e política de drogas, Cecília Oliveira; o sociólogo Arturo Huaytalla; a antropóloga Eliza Pflucker; e a assistente social e pesquisadora da Justiça Global, Monique Cruz. A mediação ficou a cargo da doutora em ciência política e investigadora do projeto POLITICS, Danielle Pereira de Araújo.

Entre os pontos destacados para a manutenção do racismo estrutural e jurídico, está a influência da mídia e dos governos na vinculação de informações e dados referentes a crimes que envolvem pessoas negras ou ações em comunidades. Segundo Cecília Oliveira, jornalista investigativa e desenvolvedora da plataforma Fogo Cruzado, no caso do Rio de Janeiro, por decisão do governo estadual, não são calculados, por exemplo, dados referentes às chacinas que ocorrem no estado. “Enquanto o Instituto de Segurança Pública não tem fechado o conceito de chacina, no Fogo Cruzado,  nós pesquisamos com outros estados como eles tratam esse tipo de  crime e como eles levantam essas informações para assim criarmos esse indicador”, pontuou.

- Hoje, já é possível que a gente saiba que no Rio de Janeiro há em média 100 chacinas por ano. Essas informações não eram divulgadas e quem detém a informação detém o que é dito sobre esse problema, o poder de controlar a situação e a pressão pública que pode ser feita sobre a gestão e segurança pública, que são direitos constitucionais que não são garantidos a muitos cidadãos que vivem em permanente situação de exceção. A democracia não chegou em muitos lugares do Brasil - concluiu Cecília Oliveira.

Também usando essa falta de transparência nos dados e o poder da informação, Monique Cruz, pesquisadora do Justiça Global e representante do fórum social de Manguinhos, comentou sobre o papel da mídia nos processos de construção dos entendimentos sobre as temáticas raciais, pontuando a  necessidade de falar sobre os propagadores do racismo institucional, que obtém vantagem através das estruturas racistas. Para ela, o sistema de justiça brasileiro é estruturado e retroalimentado para o poder de pessoas padronizadas resumidas a homens brancos heterossexuais. São estes os responsáveis pelos olhares adotados pela justiça sobre o mundo e os julgamentos que mandam a juventude fora dos padrões para a prisão.

- Ao mesmo tempo que nós temos uma juventude encarcerada em sua multiplicidade, também temos uma que é protegida e a ela é permitido exercer a juventude, experimentar e ter acesso a direitos básicos. Quando a gente pensa no sistema de justiça, segurança e políticas pública a gente precisa necessariamente pensar que algumas juventudes vão circular e serão protegidas e outras não poderão se quer colocar o pé na rua - esclarece a pesquisadora.

No Peru, a falta de dados sobre a  população negra também é um fator importante para  o racismo. Segundo a antropóloga Eliza Pflucker, desde a abolição da escravatura, em 1854, somente em 2009 houve nova aprovação de uma lei que visasse os temas afro-peruanos, com o Perdão Histórico ao Povo Afro-Peruano. Ao mesmo tempo, só em 2015 começaram maiores estudos sobre a temática. Contudo, ela destaca que falta apoio político na área.

- Logo que se dá a criação da Direção de Políticas para a População Afro-Peruana do Ministério da Cultura cria-se um Estudo Especializado sobre essa população para indagar onde e em que condições estão os negros do país. Aprovou-se também o Plano Nacional de Crescimento afro-peruana. Por falta de boa vontade política e dinheiro os projetos não tiveram bons términos e não se aprovaram as metas - concluiu Eliza Pflucker.

O encontro é uma parceria entre a Defensoria Pública, através da Coordenação de Promoção da Equidade Racial (Coopera), do  Núcleo contra a Desigualdade Racial (Nucora) e do Centro de Estudos Jurídicos (Cejur) com o Fórum de Justiça e com o projeto POLITICS: A política do antirracismo na Europa e na América Latina. O POLITICS visa analisar as relações de poder que configuram o antirracismo em diversos contextos e as ligações entre os níveis global, nacional e local, assim como os processos de diálogo e conflito entre organizações de base e instituições. O projeto é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) e sediado pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, em Portugal.

A íntegra  das mesas e apresentações de trabalhos está disponível no Canal da DPRJ no YouTube: https://bit.ly/2TSMHYd.

 

Texto: Igor Santana e Fernanda Vidon. 



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